quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

SESSÃO 5: HUMBERTO D


HUMBERTO D (1952)

O neo-realismo italiano iniciou-se com um belíssimo conjunto de obras, donde se destacam “Roma Citta Aperta”, de Rossellini (1945), “Riso Amaro”, de De Santis (1946), “Paisà”, de Rossellini (1946) e “Ladri di Biciclette”, de De Sica (1948), entre outras. O próprio De Sica, para lá do citado “Ladrões de Bicicletas”, já inscrevera outras obras suas nesta corrente, como “Scuisciá” ou “Milagre de Milão”, abordando temas como o desemprego, a juventude, a marginalidade, o papel da mulher, a ocupação e o pós-guerra, até chegar a “Umberto D” (1952), que alguns consideram a obra maior deste autor, preferindo-a mesmo a “Ladri di Biciclette”. Creio que nesta película a dupla De Sica-Zavattini condensa muito das suas preocupações, tendo desta feita como figura central Umberto D., um velho reformado, que traz consigo todos os problemas da velhice, numa sociedade traumatizada pela guerra e por tudo o que ela carrega. O filme é dedicado ao pai de Vittorio De Sica, de nome Umberto De Sica, e o título da obra não deixa de associar o protagonista do filme ao pai do realizador, o que este mesmo confirmou em entrevistas, afirmando que muitas das questões apresentadas pelo seu filme foram inspiradas em situações vividas no seu agregado familiar, quando ele ainda era jovem e assistia às dificuldades enfrentadas pela família.
Umberto D., o protagonista, é um reformado que procura manter todas as aparências de dignidade possível, numa época extremamente difícil da história de Itália, acabada de sair da II Guerra Mundial. Sem família próxima, vive em Roma, num modesto quarto alugado, num andar propriedade de uma locatária sem grandes escrúpulos e sem nenhuns problemas de consciência. Umberto D. tem como únicos companheiros um cão que ele acarinha o melhor que pode e uma jovem, criada da senhoria, que faz do velho seu confidente. No fundo, são três cúmplices que fazem da infelicidade uma ligação emocional e uma âncora que os agarra à vida e a alguma possível esperança. Mas os tempos estão maus, e o velho empregado de escritório, de cujo trabalho ainda guarda alguma roupa e a compostura necessária, vai tropeçando nos escolhos que uma sociedade ingrata para com a velhice lhe vai colocando, um após outro, no caminho.
Há em “Umberto D.” os mesmos princípios que nortearam todo o neo-realismo inicial, uma narrativa de rua, despojada de efeitos dramáticos, povoada por actores não profissionais (o extraordinário Carlo Battisti, que interpreta Umberto D, era um professor universitário reformado, que nunca representara em cinema), onde os problemas sociais sobressaem, mas há igualmente um salto em frente, numa nova perspectiva humana. O enquadramento psicológico do personagem central, a sua solidão tremenda, só disfarçada pela companhia de “Flick”, o seu fiel cão, e as conversas com a criada Maria, levam-nos já para um novo patamar de realismo, que se irá desenvolver, sobretudo com Rossellini e Antonioni, na década de 60.


Umberto Domenico Ferrari é uma personagem complexa, diversificada, não tem a aparência do bom velho com quem todos simpatizam à primeira, nem nada faz para sê-lo. Ele é um homem idoso, que já deixou o emprego há uns tempos, mas que procura esconder a humilhação de ser cada vez mais pobre, de a sociedade o afastar da vida com arrogância. Chega a tentar estender a mão à caridade, mas arrepende-se de imediato. Coloca Flick de chapéu na boca à espreita que nele caia uma moeda, mas também aí desiste. Recorre à sopa dos pobres, onde tenta dar de comer também ao seu cão, colocando o prato escondido debaixo das pernas, para não ser surpreendido pela instituição que não quer caninos na sala. Sente-se o desgosto de Umberto quando vê o seu modesto quarto esventrado pela senhoria que o quer ver pela porta fora, pois há dois meses que se atrasa na renda. Umberto descobre-se descartável, mais do que isso: sente que é um peso de que muitos se querem ver livres. Nem mesmo numa manifestação de reformados que protestam o seu desagrado se sente incorporado. Ele está a mais, é um ser fora de tempo, de um tempo que é de outros, de jovens com futuro, de empreendedores sem escrúpulos, de um “milagre económico” que lhe dizem que está a ser atrasado por culpa sua. A hora é de arrendar quartos, à hora, a casais adúlteros, fazer dinheiro de qualquer forma. Umberto Domenico Ferrari é o empecilho que tem de esperar à porta de casa que outros se sirvam da sua cama. Umberto e Flick irmanam-se nessa “vida de cão”. Por isso se compreende ainda melhor a cumplicidade que entre ambos se estabelece. Será, porém, Flick a salvar Umberto. Até quando?
Neste aspecto, “Umberto D.” data de 1952, mas é um filme intemporal. Podia ter sido rodado hoje, em Portugal, nos EUA, na Rússia, na China ou nos países nórdicos (basta ler a literatura actual de qualquer desses países, para se verificar que sobre este tema muito se já disse, mas muito se precisa ainda de fazer). Nalguns casos, existe mesmo um retrocesso, quer nas medidas de apoio, quer no sentimento generalizado das pessoas. No caso de Portugal, onde curiosamente se proíbe a eutanásia, a verdade é que são alguns governantes a propor a “extinção” dos velhos, improdutivos, e que só causam embaraços à segurança social. As pessoas que morrem sozinhas, em velhas casas e quartos sombrios, e são descobertas dias, meses, anos depois, são sintomáticas desse abandono. O filme de De Sica é um testemunho dramático, trágico, dessa existência sofrida e inglória, que cada vez mais faz pensar no suicídio. No pós-guerra em Itália, como hoje em dia em Portugal, onde esse acto de desespero é visto por muitos, infelizmente cada vez mais, como um gesto libertador de um dia a dia opressivo e aberrante.
Admiravelmente conduzido, com um rigor de olhar, uma sensibilidade, uma ternura sem nada de meloso, “Umberto D.” sobrevive sem uma ruga, colocando o nome do seu autor entre os maiores da sétima arte. Tão intensa como “Ladrões de Bicicletas”, a obra tem em Carlo Battisti (Umberto Domenico Ferrari) e Maria Pia Casilio (Maria, a empregada) dois actores admiráveis, fotografados com uma exigência moral invulgar pela câmara de G.R. Aldo. Uma obra-prima absoluta.



HUMBERTO D
Título original: Umberto D.

Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1952); Argumento: Cesare Zavattini; Produção: Giuseppe Amato, Vittorio De Sica, Angelo Rizzoli; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): G.R. Aldo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Virgilio Marchi; Decoração: Ferdinando Ruffo; Direcção de produção: Nino Misiano, Roberto Moretti; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Franco Montemurro; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Ennio Sensi; Companhias de produção: Rizzoli Film, Produzione Films Vittorio De Sica, Amato Film; Intérpretes: Carlo Battisti (Umberto Domenico Ferrari), Maria Pia Casilio (Maria, a empregada), Lina Gennari (Antonia Belloni), Ileana Simova, Elena Rea, Memmo Carotenuto, Alberto Albani Barbieri, Pasquale Campagnola, Riccardo Ferri, Lamberto Maggiorani, De Silva, etc. Duração: 89 minutos; Distribuição em Portugal: Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 18 de Março de 1953.  

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