ARROZ
AMARGO (1949)
“Arroz
Amargo” não é, seguramente, uma das obras mais significativas do neorrealismo
italiano, mas foi objetivamente dos títulos mais vistos e comentados na época
da sua estreia. Realmente este filme levanta várias questões e permite curiosas
reflexões sobre o neorrealismo. Por isso mesmo o ideal será ir por etapas.
A ideia que terá presidido inicialmente
a “Riso Amaro” terá sido apresentar um documento sobre as campanhas de
mondadeiras de arroz nas margens do rio Pó, no norte de Itália, uma das regiões
mais características nesse tipo de trabalho. O filme inicia-se em tom de
documentário, apresentando alguns dados objetivos sobre estas campanhas
sazonais. Alguém nos relata, olhando-nos directamente nos olhos, ao que vamos:
“Há vários séculos que se cultiva arroz na Itália setentrional, como na China
ou na India. O arroz cresce numa imensa planície que abarca as províncias de
Paiva, Novara e Vercelli. Nessa planície as mãos de muitas mulheres deixaram
marcas, cultivando-a rotativamente durante 400 ou 500 anos.
“Trabalho duro e repetitivo. As pernas
dentro da água, as costas curvadas, o sol a pique sobre as cabeças, mas só elas
podem fazer este trabalho. Mãos delicadas e rápidas, as mesmas que, com
paciência, mimam crianças choronas e limpam recém-nascidos.
Percebemos então que se trata de um
repórter de Rádio Turim, que se esmera na condução de um programa excepcional:
“Estamos junto aos comboios que levam as mondadeiras para o trabalho. Como
todos os anos, no início de Maio, as trabalhadoras partem para planície do
arroz. Vêm de toda a Itália. É uma mobilização de mulheres de todas as idades e
de todas as profissões. A maioria são camponesas, mas há operárias, empregadas,
costureiras ou dactilógrafas. A época da recolha do arroz dura 40 dias. De
grande fadiga.”
As imagens que acompanham estas
palavras, ilustrando-as, são fortes, vigorosas, sugestivas. As linhas de
comboio, as camionetas carregadas de vidas humanas, as mulheres que atravessam
apressadas o cenário conferem uma evidente vivacidade ao retrato social.
Estamos aparentemente no domínio do documentarismo. Mas subitamente surgem duas
figuras de homem, que introduzem uma quebra na progressão. Dir-se-ia que
estamos no domínio do filme de gangsters ou no meio de uma operação de
criminosos. É verdade. Os argumentistas e dialogistas de “Arroz Amargo” (e são
muitos: Corrado Alvaro, Giuseppe De Santis, Carlo Lizzani, Franco Monicelli,
Mario Monicelli, Carlo Musso, Ivo Perilli e Gianni Puccini) não terão
acreditado que aquela história tinha pernas para andar sem um bom suporte, uma
intriga emocionante que juntasse crime e sexo. O que poderia ser um documento
sociológico e humano particularmente interessante, redunda numa historieta
insignificante de um par de aldrabões a braços com o roubo de um colar de jóias, e um conjunto de mulheres deixadas sozinhas junto a um casebre militar,
com a libido destemperada.
Vejamos então a história em traços
gerais. Francesca (Doris Dowling) e Walter (Vittorio Gassman) são amantes, ela
trabalha num hotel, como empregada de quartos, ele vai-se desenrascando como
pode em pequenos roubos e delinquência variada. Ambos roubaram um valioso colar
e procuram passar despercebidos entrando no comboio das mulheres que partem
para os campos de arroz. Ainda na estação de caminhos de ferro, Waler dá de
caras com Silvana (Silvana Mangano), uma mulheraça que irradia sensualidade e
dança desalmadamente no meio das mondadeiras. Tudo se precipita de peripécia em
peripécia até ao desenlace final. Quem pensasse que iria descobrir um processo
de denúncia de exploração de trabalho, de luta de classes, pouco de social vai
surpreender. O filme apresenta um registo do trabalho no campo com alguma força
e verdade, mas continuamente posto em causa por imagens de uma forte
sensualidade, onde as pernas e os corpos das mulheres são a principal atração.
A preocupação em mostrar o melhor que se pode as generosas formas das
mondadeiras (ainda por cima, muitas delas criteriosamente escolhidas em função
desses predicados, veja-se o caso gritante de Silvana Mangano) acaba por toldar
muito do significado sociológico do filme, fazendo-o pecar de forma clara por
um voyeurismo quase escandaloso. Se de início se poderia pensar numa obra que
denunciasse a exploração do homem pelo homem, o que acabamos por presenciar é
algo mais parecido com a exploração da mulher pelo homem (neste caso as
actrizes e figurantes, pelos responsáveis pela empreitada). Curiosamente,
quando quase todos os filmes do neorrealismo foram desastres de bilheteira em
Itália, “Arroz Amargo” traduziu-se por um impressionante sucesso de público.
Percebem-se claramente as razões. A principal das quais chama-se Silvana
Mangano.
É evidente que existem no filme claros
chamamentos à consciência do espectador. A sequência final é uma aberta
denúncia do que então se chamava uma alienação social, que leva ao desespero a
protagonista, arrependida do seu comportamento egoísta e interesseiro. É
evidente igualmente que a obra mostra momentos de bom cinema, com imagens
empolgantes, uma montagem nervosa, boa fotografia a preto e branco, e
interpretações que sustentam as personagens a um bom nível. Pena que não
tivesse existido uma maior austeridade nos processos e não se procurasse com
tanto empenho o êxito comercial.
Censura em Portugal
“Arroz Amargo” protagonizou um caso de censura
particularmente singular em Portugal. O seu dossier é um dos mais extensos e
bem documentados do meu livro “Cinema e Censura em Portugal” (1º edição, 1978,
Ed. Arcádia; 2º edição, revista, 2001, Ed. Biblioteca Museu Republica e
Resistência, Câmara Municipal de Lisboa). O filme foi importado pela empresa de
distribuição de filmes "Mundial Filmes, Lda", e viu a censura prévia
autorizar com cortes a sua exibição. Visado pela Inspecção dos Espectáculos em
27 de Setembro de 1950, recebeu o parecer de "aprovado como espectáculo
para adultos", e estreou no Cinema Tivoli, em Lisboa, em 1 de Janeiro de
1951. Desde esse dia até 15 do mesmo mês, conservou-se em cartaz com um
razoável sucesso, mas no dia 13 de Janeiro de 1951, o Cinema Tivoli recebeu um
telefonema da Inspecção dos Espectáculos, em que a mesma entidade censória
transmitia uma ordem dada à Inspecção dos Espectáculos pelo Gabinete da
Presidência do Conselho, que determinava a proibição do filme. Dois dias
depois, o filme foi retirado da circulação, provocando a indignação da
"Mundial Filmes" e do Cinema Tivoli, dados os graves prejuízos a
ambos. Por isso a distribuidora não se resignou e tentou por diversas vezes
rever a deliberação. Em 1953, 1956 e 1959, a "Mundial Filmes, Lda."
tentou revogar a proibição, enviando recursos à Inspecção dos Espectáculos, e
dirigiu-se até à Presidência do Conselho, mas a mesma considerou que os
recursos não deviam ter resposta e deviam ser ignorados, por causa da ordem de
proibição ter chegado do Gabinete da Presidência do Conselho. Só depois de 25
de Abril de 1974, o filme foi reposto nos cinemas. Este processo mostra como se moviam as instituições, neste
caso a Inspecção dos Espectáculos, mas igualmente as entidades oficiais que se
movimentavam na sombra. É o caso da Presidência do Conselho que, ultrapassando
as deliberações dos seus próprios funcionários fieis, sustenta decisões
contrárias em completa impunidade e no maior livre arbítrio.
Claro que o neorrealismo foi chamado à
baila, durante este processo, mas será muito interessante verificar a forma
como o filme foi visto quer pela distribuidora, quer pela comissão de censura.
Na sua primeira exposição de recurso à Censura, a Mundial Filmes, Ltd.ª, regista que viu “proibidos
pela Digm.ª Comissão de Censura dois filmes das suas programações: “Arroz
Amargo” e “Castigo”. E acrescenta: “Qualquer destes dois filmes foi produzido
em Itália – país profundamente católico e onde existe a sede do catolicismo – e
têm percorrido o Mundo inteiro sem qualquer escândalo e, ainda nesta data,
“Arroz Amargo” está a ser exibido em um dos principais cinemas da Gran Via, de
Madrid, capital de um dos países mais católicos do Mundo”. A distribuidora
admite até a classificação: “De resto, como cristão e católico que somos,
entendemos que o filme está muito bem classificado para maiores de 18 anos”. E
revelam a seguir: “Pretendemos, portanto (…), que a nós nos seja dado o mesmo
tratamento, permitindo que aqueles nossos dois filmes tenham a mesma
classificação e sejam autorizados a ser exibidos livremente nos Cinemas da
Metrópole, visto que qualquer deles já foi exibido sem qualquer reacção do
público, da Imprensa, ou de qualquer colectividade católica, nas nossas
Colónias”. Curiosa esta dualidade de critérios ente Metrópole e Colónias.
Mas a história não fica por aqui. Interessante será registar o que a
censura pensou do filme, que aprovou com cortes, exarando em acta a apreciação,
delegada no Vogal Dr. Sacramento Monteiro, que elaborou o relatório que se
transcreve:
“Arroz Amargo”, o filme que ora se censura, filia-se na corrente chamada
neo-realista que avassalou o renascente cinema italiano do pós-guerra. Procura
de preferência seus temas e motivos na vida das classes sociais mais
desprotegidas da sorte, onde o drama aflora mais pronto e a violência dos
sentimentos e o instinto se manifestam com mais crueza e menos autodomínio.
Como do título se depreende, neste filme se escolheu como motivo a cultura do
arroz e todo o drama a ela ligado: o êxodo das mulheres de toda a Itália que
céleres acorrem ao pântano para a faina das mondas e outros trabalhos agrícolas
do arroz, ávidas daquela remuneração em géneros, compreensível num país onde a
alimentação escasseia e o pão de cada dia se ganha com esforço e árdua luta. A
história é simples, quase linear – a tragédia do trabalho exercido por mulheres
em terrenos alagados sob o comando de capatazes duros e imperiosos. Se não fora
a banal história de amor e o roubo de uma joia entretecida no filme, diríamos
que se tratava simplesmente de um documentário... violento. De resto, todos os
filmes italianos deste tipo neo-realistas se caracterizam normalmente por esta
contextura. Embora não consideremos o filme reprovável por motivos de ordem
moral ou política, julgamos que não poderá ser aprovado sem a supressão mais ou
menos larga de imagens e cenas que, mostrando mulheres em roupagem demasiado
sumária ou cenas de certa violência, chocariam o público português”.
Interessante as considerações sobre o neorrealismo, e a forma como “Arroz
Amargo” foi considerado neste contexto. Percebe-se facilmente que as críticas
ao seu conteúdo se prendem mais a questões morais do que sociais.
ARROZ AMARGO
Título original: Riso
amaro
Realização: Giuseppe De Santis
(Itália, 1949); Argumento: Corrado Alvaro, Giuseppe De Santis, Carlo Lizzani,
Franco Monicelli, Mario Monicelli, Carlo Musso, Ivo Perilli, Gianni Puccini;
Produção: Dino De Laurentiis; Música: Goffredo Petrassi; Fotografia (p/b):
Otello Martelli; Montagem: Gabriele Varriale; Design de produção: Carlo Egi;
Guarda-roupa: Anna Gobbi; Maquilhagem: Amato Garbini; Direcção de Produção:
Luigi De Laurentiis, Fernando Pisani; Assistentes de realização: Basilio
Franchina, Piero Nelli, Gianni Puccini; Companhias de produção: Lux Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (Walter),
Doris Dowling (Francesca), Silvana Mangano (Silvana), Raf Vallone (Marco),
Checco Rissone (Aristide), Nico Pepe (Beppe), Adriana Sivieri (Celeste),
Lia (Amelia), Maria Grazia Francia
(Gabriella), Dedi Ristori (Anna), Anna Maestri (Irene), Mariemma Bardi
(Gianna), Maria Capuzzo (Giulia), Isabella Marincola (Rosa), Carlo Mazzarella
(Gianetto), Ermanno Randi (Paolo), Antonio Nediani (Erminio), Mariano Englen
(Cesare), Attilio Dottesio (Bruno), Manlio Mannozzi (Alessandro), etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em
Portugal: inexistente; Distribuição em Espanha (DVD): Cristaldi Films/Impulso;
Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 1 de Janeiro de
1951 (retirado pela censura a 15 do mesmo mês).
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