domingo, 19 de fevereiro de 2017

ARROZ AMARGO


ARROZ AMARGO (1949)

 “Arroz Amargo” não é, seguramente, uma das obras mais significativas do neorrealismo italiano, mas foi objetivamente dos títulos mais vistos e comentados na época da sua estreia. Realmente este filme levanta várias questões e permite curiosas reflexões sobre o neorrealismo. Por isso mesmo o ideal será ir por etapas.
A ideia que terá presidido inicialmente a “Riso Amaro” terá sido apresentar um documento sobre as campanhas de mondadeiras de arroz nas margens do rio Pó, no norte de Itália, uma das regiões mais características nesse tipo de trabalho. O filme inicia-se em tom de documentário, apresentando alguns dados objetivos sobre estas campanhas sazonais. Alguém nos relata, olhando-nos directamente nos olhos, ao que vamos: “Há vários séculos que se cultiva arroz na Itália setentrional, como na China ou na India. O arroz cresce numa imensa planície que abarca as províncias de Paiva, Novara e Vercelli. Nessa planície as mãos de muitas mulheres deixaram marcas, cultivando-a rotativamente durante 400 ou 500 anos.
“Trabalho duro e repetitivo. As pernas dentro da água, as costas curvadas, o sol a pique sobre as cabeças, mas só elas podem fazer este trabalho. Mãos delicadas e rápidas, as mesmas que, com paciência, mimam crianças choronas e limpam recém-nascidos.
Percebemos então que se trata de um repórter de Rádio Turim, que se esmera na condução de um programa excepcional: “Estamos junto aos comboios que levam as mondadeiras para o trabalho. Como todos os anos, no início de Maio, as trabalhadoras partem para planície do arroz. Vêm de toda a Itália. É uma mobilização de mulheres de todas as idades e de todas as profissões. A maioria são camponesas, mas há operárias, empregadas, costureiras ou dactilógrafas. A época da recolha do arroz dura 40 dias. De grande fadiga.”
As imagens que acompanham estas palavras, ilustrando-as, são fortes, vigorosas, sugestivas. As linhas de comboio, as camionetas carregadas de vidas humanas, as mulheres que atravessam apressadas o cenário conferem uma evidente vivacidade ao retrato social. Estamos aparentemente no domínio do documentarismo. Mas subitamente surgem duas figuras de homem, que introduzem uma quebra na progressão. Dir-se-ia que estamos no domínio do filme de gangsters ou no meio de uma operação de criminosos. É verdade. Os argumentistas e dialogistas de “Arroz Amargo” (e são muitos: Corrado Alvaro, Giuseppe De Santis, Carlo Lizzani, Franco Monicelli, Mario Monicelli, Carlo Musso, Ivo Perilli e Gianni Puccini) não terão acreditado que aquela história tinha pernas para andar sem um bom suporte, uma intriga emocionante que juntasse crime e sexo. O que poderia ser um documento sociológico e humano particularmente interessante, redunda numa historieta insignificante de um par de aldrabões a braços com o roubo de um colar de jóias, e um conjunto de mulheres deixadas sozinhas junto a um casebre militar, com a libido destemperada.


Vejamos então a história em traços gerais. Francesca (Doris Dowling) e Walter (Vittorio Gassman) são amantes, ela trabalha num hotel, como empregada de quartos, ele vai-se desenrascando como pode em pequenos roubos e delinquência variada. Ambos roubaram um valioso colar e procuram passar despercebidos entrando no comboio das mulheres que partem para os campos de arroz. Ainda na estação de caminhos de ferro, Waler dá de caras com Silvana (Silvana Mangano), uma mulheraça que irradia sensualidade e dança desalmadamente no meio das mondadeiras. Tudo se precipita de peripécia em peripécia até ao desenlace final. Quem pensasse que iria descobrir um processo de denúncia de exploração de trabalho, de luta de classes, pouco de social vai surpreender. O filme apresenta um registo do trabalho no campo com alguma força e verdade, mas continuamente posto em causa por imagens de uma forte sensualidade, onde as pernas e os corpos das mulheres são a principal atração. A preocupação em mostrar o melhor que se pode as generosas formas das mondadeiras (ainda por cima, muitas delas criteriosamente escolhidas em função desses predicados, veja-se o caso gritante de Silvana Mangano) acaba por toldar muito do significado sociológico do filme, fazendo-o pecar de forma clara por um voyeurismo quase escandaloso. Se de início se poderia pensar numa obra que denunciasse a exploração do homem pelo homem, o que acabamos por presenciar é algo mais parecido com a exploração da mulher pelo homem (neste caso as actrizes e figurantes, pelos responsáveis pela empreitada). Curiosamente, quando quase todos os filmes do neorrealismo foram desastres de bilheteira em Itália, “Arroz Amargo” traduziu-se por um impressionante sucesso de público. Percebem-se claramente as razões. A principal das quais chama-se Silvana Mangano.
É evidente que existem no filme claros chamamentos à consciência do espectador. A sequência final é uma aberta denúncia do que então se chamava uma alienação social, que leva ao desespero a protagonista, arrependida do seu comportamento egoísta e interesseiro. É evidente igualmente que a obra mostra momentos de bom cinema, com imagens empolgantes, uma montagem nervosa, boa fotografia a preto e branco, e interpretações que sustentam as personagens a um bom nível. Pena que não tivesse existido uma maior austeridade nos processos e não se procurasse com tanto empenho o êxito comercial.


Censura em Portugal
“Arroz Amargo” protagonizou um caso de censura particularmente singular em Portugal. O seu dossier é um dos mais extensos e bem documentados do meu livro “Cinema e Censura em Portugal” (1º edição, 1978, Ed. Arcádia; 2º edição, revista, 2001, Ed. Biblioteca Museu Republica e Resistência, Câmara Municipal de Lisboa). O filme foi importado pela empresa de distribuição de filmes "Mundial Filmes, Lda", e viu a censura prévia autorizar com cortes a sua exibição. Visado pela Inspecção dos Espectáculos em 27 de Setembro de 1950, recebeu o parecer de "aprovado como espectáculo para adultos", e estreou no Cinema Tivoli, em Lisboa, em 1 de Janeiro de 1951. Desde esse dia até 15 do mesmo mês, conservou-se em cartaz com um razoável sucesso, mas no dia 13 de Janeiro de 1951, o Cinema Tivoli recebeu um telefonema da Inspecção dos Espectáculos, em que a mesma entidade censória transmitia uma ordem dada à Inspecção dos Espectáculos pelo Gabinete da Presidência do Conselho, que determinava a proibição do filme. Dois dias depois, o filme foi retirado da circulação, provocando a indignação da "Mundial Filmes" e do Cinema Tivoli, dados os graves prejuízos a ambos. Por isso a distribuidora não se resignou e tentou por diversas vezes rever a deliberação. Em 1953, 1956 e 1959, a "Mundial Filmes, Lda." tentou revogar a proibição, enviando recursos à Inspecção dos Espectáculos, e dirigiu-se até à Presidência do Conselho, mas a mesma considerou que os recursos não deviam ter resposta e deviam ser ignorados, por causa da ordem de proibição ter chegado do Gabinete da Presidência do Conselho. Só depois de 25 de Abril de 1974, o filme foi reposto nos cinemas. Este processo  mostra como se moviam as instituições, neste caso a Inspecção dos Espectáculos, mas igualmente as entidades oficiais que se movimentavam na sombra. É o caso da Presidência do Conselho que, ultrapassando as deliberações dos seus próprios funcionários fieis, sustenta decisões contrárias em completa impunidade e no maior livre arbítrio.
Claro que o neorrealismo foi chamado à baila, durante este processo, mas será muito interessante verificar a forma como o filme foi visto quer pela distribuidora, quer pela comissão de censura. Na sua primeira exposição de recurso à Censura, a Mundial Filmes, Ltd.ª, regista que viu “proibidos pela Digm.ª Comissão de Censura dois filmes das suas programações: “Arroz Amargo” e “Castigo”. E acrescenta: “Qualquer destes dois filmes foi produzido em Itália – país profundamente católico e onde existe a sede do catolicismo – e têm percorrido o Mundo inteiro sem qualquer escândalo e, ainda nesta data, “Arroz Amargo” está a ser exibido em um dos principais cinemas da Gran Via, de Madrid, capital de um dos países mais católicos do Mundo”. A distribuidora admite até a classificação: “De resto, como cristão e católico que somos, entendemos que o filme está muito bem classificado para maiores de 18 anos”. E revelam a seguir: “Pretendemos, portanto (…), que a nós nos seja dado o mesmo tratamento, permitindo que aqueles nossos dois filmes tenham a mesma classificação e sejam autorizados a ser exibidos livremente nos Cinemas da Metrópole, visto que qualquer deles já foi exibido sem qualquer reacção do público, da Imprensa, ou de qualquer colectividade católica, nas nossas Colónias”. Curiosa esta dualidade de critérios ente Metrópole e Colónias.
Mas a história não fica por aqui. Interessante será registar o que a censura pensou do filme, que aprovou com cortes, exarando em acta a apreciação, delegada no Vogal Dr. Sacramento Monteiro, que elaborou o relatório que se transcreve:
“Arroz Amargo”, o filme que ora se censura, filia-se na corrente chamada neo-realista que avassalou o renascente cinema italiano do pós-guerra. Procura de preferência seus temas e motivos na vida das classes sociais mais desprotegidas da sorte, onde o drama aflora mais pronto e a violência dos sentimentos e o instinto se manifestam com mais crueza e menos autodomínio. Como do título se depreende, neste filme se escolheu como motivo a cultura do arroz e todo o drama a ela ligado: o êxodo das mulheres de toda a Itália que céleres acorrem ao pântano para a faina das mondas e outros trabalhos agrícolas do arroz, ávidas daquela remuneração em géneros, compreensível num país onde a alimentação escasseia e o pão de cada dia se ganha com esforço e árdua luta. A história é simples, quase linear – a tragédia do trabalho exercido por mulheres em terrenos alagados sob o comando de capatazes duros e imperiosos. Se não fora a banal história de amor e o roubo de uma joia entretecida no filme, diríamos que se tratava simplesmente de um documentário... violento. De resto, todos os filmes italianos deste tipo neo-realistas se caracterizam normalmente por esta contextura. Embora não consideremos o filme reprovável por motivos de ordem moral ou política, julgamos que não poderá ser aprovado sem a supressão mais ou menos larga de imagens e cenas que, mostrando mulheres em roupagem demasiado sumária ou cenas de certa violência, chocariam o público português”.
Interessante as considerações sobre o neorrealismo, e a forma como “Arroz Amargo” foi considerado neste contexto. Percebe-se facilmente que as críticas ao seu conteúdo se prendem mais a questões morais do que sociais.

ARROZ AMARGO
Título original: Riso amaro

Realização: Giuseppe De Santis (Itália, 1949); Argumento: Corrado Alvaro, Giuseppe De Santis, Carlo Lizzani, Franco Monicelli, Mario Monicelli, Carlo Musso, Ivo Perilli, Gianni Puccini; Produção: Dino De Laurentiis; Música: Goffredo Petrassi; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Gabriele Varriale; Design de produção: Carlo Egi; Guarda-roupa: Anna Gobbi; Maquilhagem: Amato Garbini; Direcção de Produção: Luigi De Laurentiis, Fernando Pisani; Assistentes de realização: Basilio Franchina, Piero Nelli, Gianni Puccini; Companhias de produção: Lux Film; Intérpretes: Vittorio Gassman (Walter), Doris Dowling (Francesca), Silvana Mangano (Silvana), Raf Vallone (Marco), Checco Rissone (Aristide), Nico Pepe (Beppe), Adriana Sivieri (Celeste), Lia  (Amelia), Maria Grazia Francia (Gabriella), Dedi Ristori (Anna), Anna Maestri (Irene), Mariemma Bardi (Gianna), Maria Capuzzo (Giulia), Isabella Marincola (Rosa), Carlo Mazzarella (Gianetto), Ermanno Randi (Paolo), Antonio Nediani (Erminio), Mariano Englen (Cesare), Attilio Dottesio (Bruno), Manlio Mannozzi (Alessandro), etc. Duração: 108 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente; Distribuição em Espanha (DVD): Cristaldi Films/Impulso; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 1 de Janeiro de 1951 (retirado pela censura a 15 do mesmo mês).  

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