domingo, 19 de fevereiro de 2017

FEDERICO FELLINI (1920-1993)



FEDERICO FELLINI (1920-1993)

A biografia de Federico Fellini está cheia de incertezas, em parte por causa do próprio cineasta, que por vezes inventava episódios da sua vida. Terá nascido a 20 de Janeiro de 1920, em Rimini (Itália), filho de Ida Barbiano e de Urbano Fellini. Dois irmãos mais novos: Ricardo e Maddalena. Fala-se de um colégio religioso que haveria de marcar toda a sua adolescência e vincar um anticlericalismo que se encontra presente em grande parte da sua obra cinematográfica. Diz-se que frequentou a escola das Irmãs de San Vicenzo, depois a escola primária Teatini. Mais tarde, em 1930, entra para o Gimnasio-Liceo Giulio Cesare, localizado perto do Grande Hotel de Rimini. É seu colega aquele que ficará conhecido por Titta e que ira ser a grande influência de “Amarcord”. Desde muito novo que ama o circo e se interessa pela caricatura. Durante um acampamento das Juventudes Fascistas, em Verrucchio, desenha várias caricaturas de participantes. Em 1937, o dono do Cinema Fulgor, encomenda-lhe uma série de caricaturas de actores americanos. Publica depois desenhos no semanário “La Domenica del Corriere” e no satírico “Nerbini”. Em 1939, chega a Roma, inscreve-se em Direito, mas não é aceite.
Durante a guerra desenhou alguns episódios famosos de histórias em quadradinhos e colabora na rádio em programas humorísticos. Trabalhou também como jornalista. Encontra Giuletta Masina com quem casa a 30 de Outubro de 1943. Entretanto, em 1940, torna-se gagman de Aldo Fabrizzi e de um dos primeiros actores cómicos italianos, célebre na época, Macario (com quem trabalha em filmes dirigidos por Mario Mattoli). Em 1945, aparece como assistente de Roberto Rossellini, em “Roma, Città Aperta”. Nasce um filho que morre precocemente, devido a insuficiência respiratória. Colabora em inúmeros argumentos, é assistente de realização, continuando o seu trabalho como jornalista, humorista, caricaturista.
No ano seguinte, de novo com Rossellini, colabora em “Paisá”, é co-argumentista de “II Crime di Giovanni Episcopo”, de Alberto Lattuada. Em 1947, volta a trabalhar com Lattuada: “Sensa Pietá”. Rossellini chama-o, em 1948, para “Amore”. É assistente de Lattuada, em “II Miulino del Pó” e de Rossellini em “Francesco Giullare di Dio”. Em 1950, aparece como assistente de Pietro Germi, em “II Camino della Speranza” e, com Lattuada, co-dirige o seu primeiro filme: “Luci del Varietà”. Um ano depois, colabora em “Europa 51”, de Rossellini e em 1952 assiste novamente a Germi, em “II Brigante di Tasca del Lupo”. “O Sheik Branco”, em 1951, é o seu primeiro filme como realizador, a solo. Inicia a sua colaboração com Nino Rota. Recebe o Leão de Prata com “Os Inúteis”, em Veneza, e repete o sucesso com “A Estrada”, com que recebe o seu primeiro Oscar. “As Noites de Cabíria” arrecada segundo Oscar, e “Fellini 8 ½” o terceiro. Entretanto, “A Doce Vida” é um sucesso brilhante, recebendo a Palma de Ouro de Cannes.
Em 1961, conhece o psicanalista Ernest Bernhard e apaixona-se pelas teorias de Jung, que o influenciarão nos seus filmes futuros. Em 1967, ultrapassa um enfarte, depois de algum tempo hospitalizado. “Amarcord”, em 1972, traz-lhe um novo Oscar, de Melhor Filme em Língua não Inglesa. Entretanto, o seu cinema oscila entre a superprodução e o filme de pequeno orçamento, entre “Satiricon”, “Roma”, “Casanova”, “A Cidade das Mulheres” e “Os Palhaços”, “O Navio”, “Ensaio de Orquestra” ou “A Voz da Lua”, seu derradeiro filme. Em 1979 morre Nino Rota, o que Fellini sente profundamente. Caricatura a televisão de Berlusconi em “Ginger e Fred” e sofre novo ataque cardíaco em 1985.
1993: recebe um Oscar honorífico por toda a carreira. Em Agosto, sofre, em Rimini, uma embolia cerebral. O ataque repete-se em Roma, tempos depois. Morre a 31 de Outubro. A câmara ardente é instalada num dos estúdios da Cinecittá. No ano seguinte, a 23 de Março, morre Giulietta Masina.
Com Visconti, Rossellini, Lattuada, De Sica, Germi e alguns mais, é um dos impulsionadores da primeira época do neo-realismo, que nos anos de 40 e inícios dos 50, no pós-guerra, devolveria ao cinema italiano uma dignidade estética e, sobretudo, ética que restauraria o prestígio perdido e influenciaria toda a cinematografia moderna. A partir de início dos anos 60, torna-se num dos mestres do cinema mundial, com uma filmografia não muito extensa, mas de uma coerência e significado indesmentíveis.


Filmografia
Como gagman de Macario e Mario Mattoli
1938: Lo Vedi come soi., Lo Vedi come sei?!, de Mario Mattoli
1940: Non me Lo direi!, de Mario Mattoli
1940: Il pirata Sono io!, de Mario Mattoli

Como argumentista (quase sempre co-argumentista)
1939: Imputato, Alzatevi!, de Mario Mattoli
1941: Documento Z3, de Alfredo Guarini (não creditado no genérico)
1942: Avanti c'è Posto, de Mario Bonnard (não creditado no genérico)
1942: I Cavalieri del Deserto, de Gino Talamo, Osvaldo Valenti
1942: Quarta Pagina (O Mistério da Quarta Página), de Nicola Manzari
1943: Apparizione, de Jean de Limur (não creditado no genérico)
1943: Campo de’ Fiori, de Mario Bonnard
1943: Tutta la Cittá Canta, de Riccardo Freda
1943: L'Ultima Carrozzella, de Mario Mattoli
1945: Roma, Città Aperta (Roma Cidade Aberta), de Roberto Rosselini (neste filme é também assistente de realização)
1945: Chi l'ha visto?, de Goffredo Alessandrini
1946: Paisá (Libertação) de Roberto Rossellini (neste filme é também assistente de realização)
1947: Il Delitto di Giovanni Episcopo (A Historia do Meu Crime) de Alberto Lattuada
1947: Il Passatore, de Duilio Coletti
1947: Fumeria d'Oppio, de Raffaello Matarazzo
1947: L' Ebreo Errante, de Goffredo Alessandrini
1948: L'Amore (O Amor), de Roberto Rossellini, episódio “Il Miracolo” (neste filme é também assistente de realização e actor)
1948: Il Mulino del Pó (O Moinho do Rio Pó), de Alberto Lattuada
1948: Senza Pietà (Sem Piedade), de Alberto Lattuada
1948: La Cittá Dolente, de Mario Bonnard
1949: In Nome della Legge (Em Nome da Lei), de Pietro Gerrni
1950: Il Cammino della Speranza (O Caminho da Esperança), de Pietro Germi
1950: Francesco, Giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos), de Roberto Rossellini
1950: Luci del Varietà, de Federico Fellini e Alberto Lattuada
1951: La Città si Difende (A Cidade Defende-se), de Pietro Germi
1951: Cameriera bella Presenza Offresi..., de Giorgio Pàstina
1952: Il Brigante di Tacca del Lupo (O Bandido da Cova do Lobo), de Pietro Germi
1952: Europa '51 (Europa 51), de Roberto Rossellini
1952: Lo Sceicco Bianco (O Sheik Branco), de Federico Fellini
1953: I Vitelloni (Os Inúteis), de Federico Fellini
1953: L'Amore in Città (Retalhos da Vida), episódio “Agenzia matrimoniale”
1954: La Strada (A Estrada), de Federico Fellini (1954)
1955: Il Bidone (O Conto do Vigário), de Federico Fellini (1955)
1957: Le Notti di Cabiria (As Noites de Cabíria), de Federico Fellini (1957)
1958: Fortunella, de Eduardo De Filippo (1958)
1960: La Dolce Vita (A Doce Vida), de Federico Fellini
1962: Boccaccio '70 (1962) - episódio “Le Tentazioni del dottor Antonio”
1963: 8½ (Fellini 8 ½), de Federico Fellini
1965: Giulietta degli spiriti (Julieta dos Espíritos), de Federico Fellini
1968: Tre Passi nel Delirio (Histórias Extraordinárias) - episódio Toby Dammit
1969: Sweet Charity (Sweet Charity - A Rapariga que Queria Ser Amada), de Bob Fosse
1969: Fellini Satyricon (Fellini – Satyricon), de Federico Fellini
1969: Block-notes di un regista (Diário de um Realizador), de Federico Fellini - documentário televisivo
1970: I Clowns (Os Palhaços), de Federico Fellini
1972: Roma (Roma de Fellini), de Federico Fellini
1973: Amarcord (Amarcord), de Federico Fellini
1976: Il Casanova di Federico Fellini (O Casanova de Federico Fellini), de Federico Fellini
1979: Prova d'Orchestra (Ensaio de Orquestra), de Federico Fellini
1980: La Città delle Donne (A Cidade das Mulheres), de Federico Fellini
1983: E la Nave va (O Navio), de Federico Fellini
1985: Ginger e Fred (Ginger e Fred), de Federico Fellini
1987: Intervista (Entrevista), de Federico Fellini
1990: La Voce della Luna (A Voz da Lua), de Federico Fellini

Como realizador
1950: Luci del Varietà (co-realização com Alberto Lattuada)
1952: Lo Sceicco Bianco (O Sheik Branco)
1953: I Vitelloni (Os Inúteis)
1953: L'Amore in Città (Retalhos da Vida)
Episódio “Un ‘Agenzia Matrimoniale” (outros realizadores: Michelangelo Antonioni, Dino Risi, Francesco Masselli, Cesare Zavattini, Carlo Lizani e Alberto Lattuada)
1954: La Strada (A Estrada) 
1955: Il Bidone (O Conto do Vigário) 
1957: Le Notti di Cabiria (As Noites de Cabíria)
1960: La Dolce Vita (A Doce Vida)
1962: Boccaccio '70 (Boccaccio '70)
Episódio “Le Tentazioni del Dottor Antonio” (outros realizadores: Luchino Visconti e Vittorio De Sica)
1963: 8½ (Fellini 8 ½) 
1965: Giulietta degli Spiriti (Julieta dos Espíritos)
1968: Tre Passi nel Delirio ou Histoires Extraordinaires (Histórias Extraordinárias)
Episódio “Toby Dammit” (outros realizadores: Louis Malle e Roger Vadim)
1969: Satyricon (Fellini – Satyricon)
1969: Block-notes di un Regista (Diário de um Realizador) (TV)
1971: I Clowns (Os Palhaços)
1972: Roma (Roma de Fellini)
1973: Amarcord (Amarcord)
1976: Il Casanova di Federico Fellini (O Casanova de Federico Fellini)
1978: Prova d'Orchestra (Ensaio de Orquestra)
1980: La Città delle Donne (A Cidade das Mulheres)
1983: E la Nave Va (O Navio)
1986: Ginger e Fred (Ginger e Fred)
1987: Intervista (Entrevista)
1990: La Voce della Luna (A Voz da Lua)

Como actor
1948: L'Amore (O Amor), de Roberto Rossellini
1972: Roma (Roma de Fellini), de Federico Fellini
1974: C'Eravamo Tanto Amati (Tão Amigos que nós eramos), de Ettore Scola
1983: Il Tassinaro, de Alberto Sordi
1987: Intervista (Entrevista), de Federico Fellini
2002: Fellini, Sono un Gran Bugiardo, de Damian Pettigrew


O CINEMA SEGUNDO FEDERICO FELLINI
Nunca exerço juízos morais porque não me sinto capacitado para tanto. Não sou censor, nem padre, nem político. Não gosto de me analisar, não sou orador, nem filósofo, nem teórico. Sou apenas um contador de histórias, e o cinema é o meu ofício. (1971)

Não há nada mais triste do que o riso; nada é mais belo, magnífico, estimulante e enriquecedor do que o terror do desespero total. Acho que, enquanto vivem, todos os homens são prisioneiros deste medo terrível, no qual toda a prosperidade está votada ao fracasso, mas que preservam, mesmo no abismo mais fundo, essa liberdade esperançosa que lhes permite sorrir em situações aparentemente desesperadas. É por isso que o objectivo dos verdadeiros autores de comédia - quer dizer, dos mais profundos e honestos - não é de modo nenhum a simples diversão, mas rasgar feridas dolorosas com a crueldade de as tomar mais sentidas. (1971)

Na minha opinião, “A Estrada” procura realizar a experiência que um filósofo, Emmanuel Mounier, muito bem definiu como a mais importante e básica para abrir qualquer perspectiva social: a experiência comunitária entre dois seres humanos. Quer dizer, para aprender a riqueza e a possibilidade da vida social, hoje que se fala tanto de socialismo, é, antes de mais, importante aprender a estar, muito simplesmente, com outro homem: penso que isto é o que todas as sociedades devem aprender e que, se não se consegue superar este ponto de partida tão humilde mas necessário, talvez amanhã venhamos a estar perante uma sociedade exteriormente bem organizada e publicamente perfeita e sem mácula, na qual, porém, as relações privadas, as relações entre homem e homem, ou entre as pessoas, se mostrarão reduzidas ao vazio, à indiferença, ao isolamento, à impenetrabilidade. (1955)

“Cinéma-verité”? Prefiro “cinema-mentira”. Uma mentira é sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma da arte do espectáculo, e eu adoro espectáculo. A ficção pode sempre ter uma verdade maior do que a realidade óbvia de todos os dias. Não é preciso que as coisas que se mostram sejam autênticas. Em regra, são melhores quando não o são. O que tem de ser autêntico é a emoção que se sente e se quer exprimir. (1971)

O colaborador mais precioso que tive foi Nino Rota. Tinha uma imaginação geométrica, uma visão musical de esferas celestes, pelo que não tinha necessidade de ver as imagens dos meus filmes. Quando lhe perguntava que motivos tinha em mente para comentar esta ou aquela sequência, sentia claramente que as imagens não lhe diziam respeito: o seu era um mundo interior, a que a realidade tinha pouca possibilidade de acesso. Vivia a música com a liberdade e a facilidade de uma criatura viva numa dimensão que lhe é espontaneamente congenial. (1983)

O cinema como negócio é macabro. Grotesco. E uma mistura de jogo de futebol e de bordel. (1965)

Quando decido fazer um filme, o meu estímulo inicial é a assinatura do contrato. (1971)

Geralmente, os desenhos que faço só têm uma razão funcional e estão estritamente ligados ao meu trabalho de realizador. Desde a infância, nunca desenhei as pessoas da forma como as via diante de mim, mas sim da maneira como haviam ficado na minha memória. O desenho desata a minha fantasia. O desenho é o meu primeiro passo para decifrar. Muito mais difícil é encontrar o actor que se ajuste ao desenho... Quando Giulietta (Massina) via que eu desenhava um pequeno círculo num papel, ela sustinha a respiração. Sabia que era o começo. O círculo era o seu rosto.
Sei que vivo num mundo de fantasias. Mas prefiro que seja assim e irrito-me com tudo o que perturba a minha visão. A vida real não me interessa. Gosto de observá-la, mas no fundo apenas para dar rédea solta a minha fantasia. A fantasia tem uma dimensão muito mais real do que aquela que nos parece ser a dimensão física.


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