domingo, 19 de fevereiro de 2017

OS INÚTEIS


OS INÚTEIS (1953)

“I Vitelloni” inicia-se com uma sequência notável. Encontramo-nos numa pequena cidade da província italiana (não é, mas poderia ser, Rimini, onde nasceu Fellini, mas sim Ostia, perto de Roma), na esplanada de um hotel ou casino, ou estabelecimento semelhante, onde decorre a eleição de miss Sereia. A vacuidade do acontecimento e as reacções que provoca em familiares e amigos das concorrentes dá bem a imagem da futilidade e inutilidade não só do acto, como dos seus comparsas. Entre eles, os cinco amigos que irão protagonizar toda a estrutura romanesca da obra. O episódio serve também para os apresentar em conjunto. Um entre eles isola-se dos outros e caminha solitário pela noite, depois de uma tempestade vigorosa que se abate sobre a festa e a faz encerrar precocemente. Moraldo Rubini (Franco Interlenghi) senta-se num banco perto da estação de caminhos-de-ferro, e vê os seus pensamentos interrompidos pela aparição de um adolescente que vai trabalhar às 3 da madrugada. Enquanto uns deixam passar o tempo na mais completa improdutividade e desocupação, outros trabalham arduamente. Mais à frente, um deles vai até à porta de uma empresa onde trabalha a irmã, durante toda a noite, para lhe pedir dinheiro emprestado, para as suas necessidades. Os que trabalham sustentam os vícios e o dolce far niente dos inúteis – eis a ideia inicial de Fellini, neste retrato amargo-doce da vida de alguns jovens na Itália do pós-guerra, numa cinzenta cidade provinciana onde raramente acontece algo digno de registo. Filhos de famílias remediadas, todos eles vivem à custa dos pais ou de familiares, alguns acalentam sonhos de virem a ser “alguém”, mas pouco fazem para isso, ou por preguiça ou falta de talento.
O filme terá muito de autobiográfico, não tanto no que diz respeito ao próprio Fellini enquanto jovem, mas à vida de muitos com quem se cruzou na sua Rimini natal. É da sua experiência pessoal, do que viu e do que sentiu que se vai abastecer a inspiração do cineasta para esta obra que conserva muito do neo-realismo inicial, mas que lhe acrescenta desde logo não só o seu olhar profundamente pessoal, como um interesse humano por esses destroços que se arrastam ao sabor das marés numa qualquer cidade costeira. Os cinco amigos, interpretados por Franco Interlenghi (Moraldo Rubini), Alberto Sordi (Alberto), Franco Fabrizi (Fausto Moretti), Leopoldo Trieste (Leopoldo Vannucci) e Riccardo Fellini (Riccardo), passeiam sem destino pelas ruas da cidade, executam pequenas piruetas de efeito patético, descem até ao cais e olham a vastidão do mar, como fronteira da sua esperança, como limite das suas ambições. Ali ficarão perdidos, disfarçados em fatos carnavalescos e prolongando a máscara ao longo de todo o ano.
Um deles, Fausto, engravida a namorada, Sandra, irmã de Moraldo, é obrigado a casar, arranja por favor um emprego, tenta seduzir a mulher do patrão, é despedido, é pai, rouba um anjo que procura vender aos religiosos, e de humilhação em humilhação aceita a ruína. Outro, Alberto, leva a vida a brincar e de esgar em esgar efeminado, tropeça na sua própria infantilidade. Leopoldo, frustrado escritor teatral, consome energias em textos medíocres que um velho actor aceita ouvir ler, na esperança de ter uma aventura amorosa no final da noite. De Riccardo, interpretado por um irmão de Fellini, pouco se sabe.
O ambiente é asfixiante, por muito que os traços da comédia aqui e ali assomem. O humor de Felllini não é condescendente, mas é de uma tocante humanidade. Aqueles “vitelloni” são deserdados de um tempo, escombros de uma sociedade à deriva e o único caminho possível é sair da cidade, procurar outros horizontes, arejar. É o que faz Moraldo, sem destino, apenas em fuga de um terreno pantanoso onde sabe que, mais cedo ou mais tarde, se irá afundar irremediavelmente. Quem sabe qual será o seu futuro? Possivelmente poderá não ser muito melhor, mas pelo menos fica a atitude, o esboço de revolta.


Fellini, por exemplo, à semelhança de Moraldo, aos dezanove anos partiu de Rimini para Roma, que o irá acolher e apadrinhar. Quando Moraldo sobe para o comboio e este inicia a sua marcha, surge na estação o adolescente que ali trabalha e dele se despede. Está ali para funcionar como garante da decisão de Moraldo. Mas a partida deste está ainda ligada a um outro aspecto do filme que se afigura muito significativo: o comboio afasta-se e este movimento liga-se a algumas panorâmicas pelos quartos dos amigos que ficam para trás e que dormem nas suas camas, indiferentes a tudo o mais. Eles e aquela pequena cidade continuarão a ser os mesmos, embalados pelo cinzentismo e pela ociosidade. Moraldo, na sua postura de observador algo distanciado, apesar de solidário em muito, parece ser o único do grupo a tomar consciência da situação e do que o futuro lhes poderia reservar.
De resto, o filme mantém as obsessões fellinianas: as festas truculentas (aqui o carnaval e o seu cortejo), o gosto pelo espectáculo e o teatro, o deambular pela cidade e a sedução pela noite, o confronto entre a realidade e a fantasia (de que aqui se alimentam os “vitelloni”, mas também a fantasia que permite a fuga e o sonho derradeiros), o diálogo entre os inocentes mais ou menos explorados e os manipuladores sem escrúpulos.
A estrutura narrativa da obra é moderna no seu tempo, misturando acções diversas, acompanhando histórias individuais e do grupo, antecipando assim alguma da tonalidade dos filmes da “nouvelle vague” (Godard, Truffaut, etc.), do “free cinema” (“Sábado à noite, Domingo de Manhã”, de Karel Reisz, “We Are the Lambert Boys”, de Lindsay Anderson…) ou mesmo de algum cinema norte-americano (George Lucas terá confessado que “Os Inúteis” terão influenciado o seu “American Graffitti”).
Os actores são magníficos, recortando personagens que se impõem facilmente, o que a música de Nino Rota ajuda a cimentar, criando um ambiente de falsa alegria e de profunda depressão. “Os Inúteis” acabará por ser o filme que marca a imposição de Fellini como o grande realizador, o criador sem paralelo na história do cinema, ao triunfar no Festival de Veneza, onde ganhou o Leão de Prata, em 1953. A partir daí, o seu caminho está traçado. Já o estava antes, para quem o soubesse ver, mas o prémio de Veneza chamou a atenção para a sua obra de forma inequívoca.


OS INÚTEIS
Título original: I Vitelloni
Realização: Federico Fellini (Itália, França, 1953); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli; Produção: Jacques Bar, Mario De Vecchi, Lorenzo Pegoraro; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Carlo Carlini, Otello Martelli, Luciano Trasatti; Montagem: Rolando Benedetti; Design de produção: Mario Chiari; Decoração: Luigi Giacosi; Guarda-roupa: Margherita Marinari; Maquilhagem: Michele Bomarzi; Direcção de produção: Luigi Giacosi; Assistentes de realização: Moraldo Rossi, Max de Vaucorbeil, Stefano Ubezio; Departamento de arte: Italo Tomassi; Companhias de produção: Cité Films, Peg-Films; Intérpretes: Franco Interlenghi (Moraldo Rubini), Alberto Sordi (Alberto), Franco Fabrizi (Fausto Moretti), Leopoldo Trieste (Leopoldo Vannucci), Riccardo Fellini (Riccardo), Leonora Ruffo (Sandra Rubini), Jean Brochard (Francesco Moretti), Claude Farell (Olga), Carlo Romano (Michele Curti), Enrico Viarisio (senhor Rubini), Paola Borboni (senhora Rubini), Lída Baarová (Giulia Curti), Arlette Sauvage, Vira Silenti, Maja Niles, Achille Majeroni, Guido Martufi, Silvio Bagolini, Milvia Chianelli, Enzo Andronico, Alberto Anselmi, Gustavo De Nardo, Graziella De Roc, Giovanna Galli, Franca Gandolfi, Lilia Landi, Gigetta Morano, Lino Toffolo, Gondrano Trucchi, etc. Duração: 102 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos. 

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