AS NOITES DE CABÍRIA (1957)
“As
Noites de Cabíria” assinala o fecho de um ciclo Giulietta Masina no cinema de
Federico Fellini, que se iniciara em 1950, com a participação da actriz no
filme de estreia do seu marido (com quem estava casada desde 1943), “Luci del Varietà” (onde interpretava o papel de Melina Amour,
dedicada companheira do director da companhia de teatro), e que continuara em
“O Sheik Branco” (1952), onde fora Cabíria, uma prostituta, “A Estrada” (1954),
interpretando Gelsomina, a companheira de Zampanò, “O Conto do Vigário” (1955),
criando a figura de Iris, e, finalmente, de novo como protagonista, “As Noites
de Cabíria” (1957). Ela voltaria a trabalhar sob a direcção de Fellini em
“Julieta dos Espíritos” (1965, como Giulietta Boldrini) e “Ginger e Fred”
(1986, como Amelia Bonetti e Ginger), mas num registo bastante diferente desta
primeira fase. Deve dizer-se que a celebridade de Fellini nestes primeiros
tempos ficou igualmente muito ligada ao excepcional talento da sua actriz,
assim como a inversa é igualmente verdadeira: muito do sucesso das composições
de Giulietta Masina se ficou igualmente a dever à forma como Fellini encontrava
o papel perfeito para a sua actriz e a dirigia de forma irrepreensível. Foi um
casamento harmonioso, que deu frutos admiráveis, como fica provado mais uma vez
neste fabuloso retrato de Maria 'Cabiria' Ceccarelli, uma prostituta de Roma,
que inicia o filme a ser roubada por um chulo sem escrúpulos, que para se
apoderar da sua carteira a lança num rio, e que acaba a obra numa situação algo
semelhante.
E se os
primeiros filmes de Fellini progrediam ao longo de uma linha ficcional
definida, desenrolando uma situação mais ou menos linear, a partir de “Le Notti
di Cabiria” a narrativa começa a fragmentar-se em episódios que se sucedem, que
ajudam a definir uma personagem, mas não progridem na ficção. Digamos que
acrescentam dramaticidade, acentuam aspectos, mas são como que momentos de uma
vida captados ao acaso.
Um
pouco na linha de Gelsomina, de “A Estrada”, Cabiria é uma mulher simples,
doce, ingénua, por vezes revoltada com a vida, mas quase sempre dedicada e
crédula. “Faz” a zona degradada de Ostia, nos arredores de Roma, longe das
profissionais da Via Veneto, mas sempre acreditando que um dia surgirá um
príncipe encantado que a libertará daquela vida. Não se considera uma
desgraçada, tem casa onde dormir e um tecto onde se resguardar, apesar da
desolação do cenário, e dos sucessivos amargos de boca que conhecidos e
desconhecidos lhe provocam. Uma noite, cai nas graças de um conhecido actor de
cinema, Alberto Lazzari (um magnífico Amedeo Nazzari), que a leva para casa e a
faz desejar a realização dos mais assolapados sonhos, mas rapidamente cai na
real, sem contudo perder o optimismo e a esperança. O milagre será sempre possível,
crê. Ainda que olhe com alguma distanciação toda a parafernália em redor da
ermida do “Divino Amor”, assim como protesta contra o mágico que a hipnotiza e
lhe prediz o futuro. Mas está novamente pronta a ir atrás do discreto e sedutor
Oscar D'Onofrio (François Périer), que lhe promete casamento e amor eterno. De
desilusão em desilusão, Cabíria consegue, todavia, manter um sorriso no olhar
e, em seu redor, a música e a dança dos jovens que a acompanham parecem dar-lhe
razão.
Como
sempre em Fellini, dos puros e ingénuos é o reino de Deus. A sociedade não é
perfeita, longe disso, há maldade e crueldade um pouco por todo o lado, há
pessoas sombrias e situações dilacerantes, mas a bondade e a beleza interior
parecem atravessar incólumes os entraves. Foi Gilbert Salachas, num volume
dedicado a Fellini (Ed.Seghers, colecção “Cinema d’Aujourd’hui”) quem afirmou
com justeza: “Encontramos constantemente uma dupla procura em Fellini. De um
lado, a agressividade que vem da lucidez, doutra parte a simpatia. Se se preferir,
o cineasta condena globalmente os costumes, mas “salva” individualmente as
personagens, quer sejam vítimas, os seus representantes ou os seus artesãos”.
Na verdade, há sempre um toque de simpatia, de compreensão, quer se olhe para
Cabíria, vítima das circunstâncias, quer se olhe para os que com ela se cruzam,
os que a hostilizam, os que a ofendem ou magoam. O primeiro assaltante, que a
empurra para o rio, é uma silhueta de que nada se sabe, mas Oscar D'Onofrio, o
delicado aspirante à mão de Cabíria, acaba por levar avante apenas parte dos
seus intuitos, afastando-se do irremediável por uma crise de consciência que o
“salva” a si e a Cabíria. Também o comportamento de Alberto Lazzari acaba por
ser de alguma forma compreensível. Ele “utiliza” Cabíria como vingança, mas
acaba por regressar ao seu amor (?) e tenta aligeirar o peso na consciência com
umas notas. Afinal ela é ou não uma prostituta? Mas o dinheiro nem tudo
resolve.
A
Itália já se está a transformar neste ano de 1957. O “milagre económico” do
pós-guerra começa a dar os seus frutos. Não nas zonas pobres dos arredores, mas
nos bairros finos do centro de Roma, de que é exemplo a casa de Alberto
Lazzari. Fellini prepara já a crítica a esta sociedade de consumo imediato de
prazeres e de luxo, virada para o lucro e a ausência de escrúpulos de que irá
falar em “A Doce Vida” e “8 ½”.
Oscilando
entre a crítica social e um certo humor, o argumento de Fellini, co-assinado,
como costume, pelos seus colaboradores regulares Ennio Flaiano e Tullio
Pinelli, desenrola-se de forma moderna, solto de amarras, prenunciando já uma
outra abordagem do realismo, aqui poético em jeito de crónica do quotidiano. A
partitura musical de Nino Rota insinua-se como sempre com a precisão dramática
indispensável, e a fotografia de Aldo Tonti é igualmente notável. A
interpretação é toda ela brilhante, mas Giulietta Masina é sublime. Em Cannes e
San Sebastian foi premiada como Melhor Actriz. O filme foi Palma de Ouro em
Cannes e Oscar de Melhor Filme em língua não inglesa. Nos BAFTAs, da Academia
Britânica, a obra conquistou o prémio de Melhor Filme Estrangeiro e Giulietta
Masina o de Melhor Actriz. “Le Notti di Cabiria” foi ainda “David di
Donatello”, da Academia de Cinema Italiano, para Melhor Realização e Melhor
Produção. Entre várias outras recompensas.
AS NOITES DE CABÍRIA
Título original: Le Notti di
Cabiria
Realização: Federico Fellini (Itália,
França, 1957); Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli,
segundo romance de Maria Molinari; diálogos de Pier Paolo Pasolini; Produção:
Dino De Laurentiis; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Aldo Tonti, Otello
Martelli; Montagem: Leo Cattozzo; Design de produção: Piero Gherardi;
Guarda-roupa: Piero Gherardi; Maquilhagem: Dante Trani, Eligio Trani; Direcção
de produção: Luigi De Laurentiis, Emimmo Salvi; Assistentes de realização:
Dominique Delouche, Moraldo Rossi; Departamento de arte: Brunello Rondi; Som:
Oscar Di Santo, Roy Mangano; Companhias de produção: Dino de Laurentiis
Cinematografica, Les Films Marceau; Intérpretes:
Giulietta Masina (Maria 'Cabiria' Ceccarelli), François Périer (Oscar
D'Onofrio), Franca Marzi (Wanda), Dorian Gray (Jessy), Aldo Silvani (mágico),
Ennio Girolami (Amleto), Mario Passante (tio de Amleto), Christian Tassou,
Amedeo Nazzari (Alberto Lazzari), Gianni Baghino, Franco Balducci, Ciccio
Barbi, Luciano Bonanni, Jusy Boncinelli, Loretta Capitoli, Leo Cattozzo,
Dominique Delouche, Edda Evangelista, Franco Fabrizi, Riccardo Fellini, Ines
Ferrari, Giovanna Gattinoni, Amedeo Girardi, Pina Gualandri, Elio Mauro, Nino
Milano, Jean Mollier, Sandro Moretti, Sergio Parlato, Mimmo Poli, Polidor,
María Luisa Rolando, Vittorio Tosti, etc. Duração:
110 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal (DVD):
inexistente; Data de estreia em Portugal: 27 de Novembro de 1957.
Sem comentários:
Enviar um comentário