domingo, 19 de fevereiro de 2017

NÃO HÁ PAZ ENTRE AS OLIVEIRAS


NÃO HÁ PAZ ENTRE AS OLIVEIRAS (1950)

Se “Arroz Amargo”, de 1949, nos deixa presentemente um travo amargo após a sua visão, “Não há Paz entre as Oliveiras” (Non c'é pace tra gli ulivi), do ano seguinte, parece ganhar com a passagem do tempo e afirma-se hoje em dia um filme bastante “moderno” na sua concepção gráfica, furtando-se a um realismo directo e optando por um certo caligrafismo, na composição de enquadramentos, na encenação e na marcação rígida das personagens, na iluminação, e mesmo nalguma forma de interpretação algo estilizada que relembra filmes muito actuais e se afastava de uma corrente de interpretação naturalista que o facto de os cineastas recorrerem muito a actores não profissionais por vezes impunha.
Giuseppe De Santis nasceu na província de nome Latina, na região de Lácio, a sul de Roma. Encurralada pelas montanhas e o mar Tirreno, é também conhecida por Ciociaria, designação que Vittorio De Sica notabilizou no seu filme de 1960 com o título “La Ciociara” (em português “Duas Mulheres”), retirado de um romance de Alberto Moravia. Esta região, a Lazio meridional, foi terra de gente simples e rural, pouco esclarecida política e socialmente, o que incentivou muitos escritores e realizadores de cunho social a aproximarem-se dos seus habitantes e dos seus problemas, criando filmes e romances de empenhamento antropológico, sociológico e inclusive abertamente político. Como é o caso de “Não há Paz entre as Oliveiras, que se inicia por um excelente plano sequência pela desoladora paisagem da região, acompanhando o labor dos pastores e demais habitantes de tão inóspito espaço geográfico e humano. 


Depois a câmara desloca-se para o interior de uma casa humilde, com a porta a abrir para o exterior, por onde entra Francesco Dominici (Raf Vallone), de regresso à família, pai, mãe e irmã, depois de três anos na guerra e de outros três passados numa prisão. Este plano recorda obviamente um outro que irá surgir seis anos mais tarde (1956), pela mão de John Ford, quando, no início do filme “A Desaparecida” (The Searchers), John Wayne também regressa a casa depois de uma longa ausência na guerra. Francesco, percebe-se depois, descobre, ao retornar, que o seu rebanho havia sido roubado e a prometida noiva, Lucia Silvestri (Lucia Bosé), o havia trocado pelo poderoso Agostino Bonfiglio (Folco Lulli), um homem sem escrúpulos que vai fazendo fortuna com o medo que impõe na região. Não há trabalho para Francesco, a única pessoa que viu o roubo e sabe quem o perpetrou é Lucia, que se afasta dele, e o desespero e a revolta crescem. Francesco jura vingança e, pela noite, vai reaver as suas ovelhas (segundo a máxima: «Chi ruba quello che è suo, non è ladro»), mas acaba preso, acusado de roubo, julgado e, sem testemunhas que abonem a seu favor, condenado.
Durante as cenas de multidão (enfim, a multidão possível numa região de não muita densidade populacional), assiste-se a personagens hirtas, paradas no tempo, estátuas humanas que olham e não intervém, aqui e ali um arremedo de coro grego, mas sussurrado. Uma região tolhida pelo medo, que só nos planos finais se movimenta, libertando-se colectivamente desse peso. Obviamente que a lição marxista que indica que os trabalhadores só se libertam do jugo dos que os exploram agindo em grupo, como um só elemento que reúne a força de todos, está adjacente a esta encenação, o que não deixa de ser significativo, as imagens e os seus signos funcionarem como elementos expressivos na edificação de uma ideia. É, aliás, muito curioso verificar como a mise-en-scène de Giuseppe De Santis tenta reproduzir o processo revolucionário proposto pelo marxismo-leninismo: uma população abúlica, ignorante e paralisada pelo medo, é despertada por um facto novo, uma ocorrência injusta, que a alerta para formas de luta possíveis, quando se reúnam em torno de um projecto comum. No filme só faltará mesmo a existência de um elemento politicamente consciente, que assuma e represente a liderança do movimento, nesse caso identificado com o PC. Francesco Dominici é o elemento desbloqueador das situações de conflito, mas nada nos diz que tenha alguma ligação partidária.


O argumento, escrito pelo próprio Giuseppe De Santis, que como vimos conhece bem a região, pois nasceu em Fondi, na Ciociaria, conta ainda coma colaboração de Gianni Puccini, Libero De Libero e Carlo Lizzani, todos eles na época fortemente comprometidos com o Partido Comunista Italiano. Não será de estranhar, portanto, que o filme procure orientar o espectador para uma leitura social e política unívoca. Acontece que, ao contrário de “Arroz Amargo”, onde essa orientação ideológica tropeça nalguns escolhos, particularmente na exploração desmedida de uma sensualidade obsessiva das apanhadoras de arroz (com óbvio destaque para Silvana Mangano), aqui o processo é mais límpido, esteticamente cuidado, criando um clima estilístico muito interessante. Neste aspecto a bela fotografia a preto e branco de Piero Portalupi é um contributo importante, nas belíssimas paisagens que colhe, em cenas de bom recorte, com pastores e mulheres de negro, polícias e rebanhos, perseguições e confrontos de certa intensidade dramática. É muito curiosa a forma como Giuseppe De Santis dispõe as figuras nos seus cenários, como já dissemos, hirtas e esfíngicas de início, dispersas com intenção gráfica muito definida, pelas ruas e praças da aldeia, pelas escadarias e pelas montanhas. A referência à tragédia grega não é invocada de ânimo leve.  Também não será absurdo referir-se a influência de cineastas soviéticos como Djovenko ou Eisenstein, tanto na forma como captam a natureza, como enquadram os homens nesse contexto. Os enquadramentos precisos e rigorosos de Giuseppe De Santis fazem pensar nos enquadramentos de Eisenstein, retirados de storyboards minuciosos.
Ao contrário de alguns outros filmes neorrealistas deste período, "Non c'è pace tra gli ulivi" está bem fornecido de actores profissionais, que se mesclam bem com a mole humana não profissional. Raf Vallone, Lucia Bose e Folco Lulli integram-se bem na aspereza do ambiente. Bosé tinha sido coroada Miss Itália dois anos antes (esta era uma época em que este concurso de beleza abastecia fortemente o cinema italiano, veja-se os casos de Sofia Loren, Gina Lollobrigida, Silvana Pampanini, Silvana Mangano, Gianna Maria Canale, Eleonora Rossi Drago, entre algumas mais).



NÃO HÁ PAZ ENTRE AS OLIVEIRAS
Título original: Non c'è pace tra gli ulivi

Realização: Giuseppe De Santis (Itália, 1950); Argumento: Giuseppe De Santis, Gianni Puccini, Libero De Libero, Carlo Lizzani; Produção: Domenico Forges Davanzati; Música: Goffredo Petrassi; Fotografia (p/b): Piero Portalupi; Montagem: Gabriele Varriale; Design de produção: Carlo Egidi; Decoração: Carlo Egidi; Guarda-roupa: Anna Gobbi; Maquilhagem: Libero Politi; Direcção de Produção: Vittorio Musy Glori; Assistentes de realização: Basilio Franchina, Gianni Puccini; Som: Venanzio Biraschi, Giovanni Rossi; Companhia de produção: Lux Film; Intérpretes: Raf Vallone (Francesco Dominici), Lucia Bosé (Lucia Silvestri), Folco Lulli (Agostino Bonfiglio), Maria Grazia Francia (Maria Grazia Dominici), Dante Maggio (Salvatore Capuano), Michele Riccardini (o guarda), Vincenzo Talarico (o advogado de defesa de Francesco), Piero Tordi (o advogado Gaetano Bertarelli), Attilio Torelli, Giacomo Sticca, Maddalena Di Tricchio, Giuseppina Corona, Angelina Chiusano, Tommaso Di Gregorio, Giovanni Paparella, Vincenzo Jannone, Giuseppe De Santis (narrador), etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em Portugal (cinema): Mundial Filmes; (DVD): inexistente; Distribuição em Itália (DVD): CristaldFilm; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 17 de Outubro de 1951 (Ginásio).

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