NÃO
HÁ PAZ ENTRE AS OLIVEIRAS (1950)
Se “Arroz Amargo”, de 1949, nos deixa
presentemente um travo amargo após a sua visão, “Não há Paz entre as Oliveiras”
(Non c'é pace tra gli ulivi), do ano seguinte, parece ganhar com a passagem do
tempo e afirma-se hoje em dia um filme bastante “moderno” na sua concepção
gráfica, furtando-se a um realismo directo e optando por um certo caligrafismo,
na composição de enquadramentos, na encenação e na marcação rígida das
personagens, na iluminação, e mesmo nalguma forma de interpretação algo
estilizada que relembra filmes muito actuais e se afastava de uma corrente de
interpretação naturalista que o facto de os cineastas recorrerem muito a
actores não profissionais por vezes impunha.
Giuseppe De Santis nasceu na província
de nome Latina, na região de Lácio, a sul de Roma. Encurralada pelas montanhas
e o mar Tirreno, é também conhecida por Ciociaria, designação que Vittorio De
Sica notabilizou no seu filme de 1960 com o título “La Ciociara” (em português
“Duas Mulheres”), retirado de um romance de Alberto Moravia. Esta região, a
Lazio meridional, foi terra de gente simples e rural, pouco esclarecida
política e socialmente, o que incentivou muitos escritores e realizadores de
cunho social a aproximarem-se dos seus habitantes e dos seus problemas, criando
filmes e romances de empenhamento antropológico, sociológico e inclusive
abertamente político. Como é o caso de “Não há Paz entre as Oliveiras, que se
inicia por um excelente plano sequência pela desoladora paisagem da região,
acompanhando o labor dos pastores e demais habitantes de tão inóspito espaço
geográfico e humano.
Depois a câmara desloca-se para o
interior de uma casa humilde, com a porta a abrir para o exterior, por onde
entra Francesco Dominici (Raf Vallone), de regresso à família, pai, mãe e irmã,
depois de três anos na guerra e de outros três passados numa prisão. Este plano
recorda obviamente um outro que irá surgir seis anos mais tarde (1956), pela
mão de John Ford, quando, no início do filme “A Desaparecida” (The Searchers),
John Wayne também regressa a casa depois de uma longa ausência na guerra.
Francesco, percebe-se depois, descobre, ao retornar, que o seu rebanho havia
sido roubado e a prometida noiva, Lucia Silvestri (Lucia Bosé), o havia trocado
pelo poderoso Agostino Bonfiglio (Folco Lulli), um homem sem escrúpulos que vai
fazendo fortuna com o medo que impõe na região. Não há trabalho para Francesco,
a única pessoa que viu o roubo e sabe quem o perpetrou é Lucia, que se afasta
dele, e o desespero e a revolta crescem. Francesco jura vingança e, pela noite,
vai reaver as suas ovelhas (segundo a máxima: «Chi ruba quello che è suo, non è
ladro»), mas acaba preso, acusado de roubo, julgado e, sem testemunhas que
abonem a seu favor, condenado.
Durante as cenas de multidão (enfim, a
multidão possível numa região de não muita densidade populacional), assiste-se
a personagens hirtas, paradas no tempo, estátuas humanas que olham e não
intervém, aqui e ali um arremedo de coro grego, mas sussurrado. Uma região
tolhida pelo medo, que só nos planos finais se movimenta, libertando-se
colectivamente desse peso. Obviamente que a lição marxista que indica que os
trabalhadores só se libertam do jugo dos que os exploram agindo em grupo, como
um só elemento que reúne a força de todos, está adjacente a esta encenação, o
que não deixa de ser significativo, as imagens e os seus signos funcionarem
como elementos expressivos na edificação de uma ideia. É, aliás, muito curioso
verificar como a mise-en-scène de Giuseppe De Santis tenta reproduzir o
processo revolucionário proposto pelo marxismo-leninismo: uma população
abúlica, ignorante e paralisada pelo medo, é despertada por um facto novo, uma
ocorrência injusta, que a alerta para formas de luta possíveis, quando se
reúnam em torno de um projecto comum. No filme só faltará mesmo a existência de
um elemento politicamente consciente, que assuma e represente a liderança do
movimento, nesse caso identificado com o PC. Francesco Dominici é o elemento
desbloqueador das situações de conflito, mas nada nos diz que tenha alguma ligação
partidária.
O argumento, escrito pelo próprio
Giuseppe De Santis, que como vimos conhece bem a região, pois nasceu em Fondi,
na Ciociaria, conta ainda coma colaboração de Gianni Puccini, Libero De Libero
e Carlo Lizzani, todos eles na época fortemente comprometidos com o Partido
Comunista Italiano. Não será de estranhar, portanto, que o filme procure
orientar o espectador para uma leitura social e política unívoca. Acontece que,
ao contrário de “Arroz Amargo”, onde essa orientação ideológica tropeça nalguns
escolhos, particularmente na exploração desmedida de uma sensualidade obsessiva
das apanhadoras de arroz (com óbvio destaque para Silvana Mangano), aqui o
processo é mais límpido, esteticamente cuidado, criando um clima estilístico
muito interessante. Neste aspecto a bela fotografia a preto e branco de Piero
Portalupi é um contributo importante, nas belíssimas paisagens que colhe, em
cenas de bom recorte, com pastores e mulheres de negro, polícias e rebanhos,
perseguições e confrontos de certa intensidade dramática. É muito curiosa a
forma como Giuseppe De Santis dispõe as figuras nos seus cenários, como já
dissemos, hirtas e esfíngicas de início, dispersas com intenção gráfica muito
definida, pelas ruas e praças da aldeia, pelas escadarias e pelas montanhas. A
referência à tragédia grega não é invocada de ânimo leve. Também não será absurdo referir-se a
influência de cineastas soviéticos como Djovenko ou Eisenstein, tanto na forma
como captam a natureza, como enquadram os homens nesse contexto. Os enquadramentos
precisos e rigorosos de Giuseppe De Santis fazem pensar nos enquadramentos de
Eisenstein, retirados de storyboards minuciosos.
Ao contrário de alguns outros filmes
neorrealistas deste período, "Non c'è pace tra gli ulivi" está bem
fornecido de actores profissionais, que se mesclam bem com a mole humana não
profissional. Raf Vallone, Lucia Bose e Folco Lulli integram-se bem na aspereza
do ambiente. Bosé tinha sido coroada Miss Itália dois anos antes (esta era uma
época em que este concurso de beleza abastecia fortemente o cinema italiano,
veja-se os casos de Sofia Loren, Gina Lollobrigida, Silvana Pampanini, Silvana
Mangano, Gianna Maria Canale, Eleonora Rossi Drago, entre algumas mais).
NÃO
HÁ PAZ ENTRE AS OLIVEIRAS
Título
original: Non c'è pace tra gli ulivi
Realização: Giuseppe De
Santis (Itália, 1950); Argumento: Giuseppe De Santis, Gianni Puccini, Libero De
Libero, Carlo Lizzani; Produção: Domenico Forges Davanzati; Música: Goffredo
Petrassi; Fotografia (p/b): Piero Portalupi; Montagem: Gabriele Varriale;
Design de produção: Carlo Egidi; Decoração: Carlo Egidi; Guarda-roupa: Anna
Gobbi; Maquilhagem: Libero Politi; Direcção de Produção: Vittorio Musy Glori;
Assistentes de realização: Basilio Franchina, Gianni Puccini; Som: Venanzio
Biraschi, Giovanni Rossi; Companhia de produção: Lux Film; Intérpretes: Raf Vallone (Francesco Dominici), Lucia Bosé (Lucia
Silvestri), Folco Lulli (Agostino Bonfiglio), Maria Grazia Francia (Maria
Grazia Dominici), Dante Maggio (Salvatore Capuano), Michele Riccardini (o
guarda), Vincenzo Talarico (o advogado de defesa de Francesco), Piero Tordi (o
advogado Gaetano Bertarelli), Attilio Torelli, Giacomo Sticca, Maddalena Di
Tricchio, Giuseppina Corona, Angelina Chiusano, Tommaso Di Gregorio, Giovanni
Paparella, Vincenzo Jannone, Giuseppe De Santis (narrador), etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em
Portugal (cinema): Mundial Filmes; (DVD): inexistente; Distribuição em Itália
(DVD): CristaldFilm; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em
Portugal: 17 de Outubro de 1951 (Ginásio).
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