segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O NEORREALISMO (1945 – 1960)



O NEORREALISMO (1945 – 1960)

O neorrealismo é seguramente dos movimentos artísticos que, no campo do cinema, teve uma maior influência em todo o futuro da cinematografia mundial. Surgiu num momento muito paricular da história da Europa (e do mundo) mas teve antecessores que possibilitaram a sua eclosão, nomeadamente algumas escolas realistas, como o documentarismo social inglês dos anos 30 (onde avultam as obras de John Grierson, Basil Wright, Edgar Anstey, Stuart Legg, Paul Rotha, Arthur Elton, Humphrey Jennings, Harry Watt ou Alberto Cavalcanti, entre outros), algumas incursões da escola soviética, mas também de muitos cineastas com uma obra muito particular, como Robert Flaherty, Joris Ivens, Dziga Vertov e tantos mais. Integrando-se nessa corrente realista, o neorrealismo teve, todavia, particularidades próprias. 
Não querendo aqui enunciar exaustivamente as características do neorrealismo, é conveniente sublinhar algumas delas. O neorrealismo nasce de considerandos e de situações diversas que se reúnem: o cinema italiano foi, durante a época fascista, ou um cinema de propaganda do sistema, precisamente do fascismo mussoliniano, ou um cinema de fuga à realidade. Os cineastas que estavam com o fascismo, elogiavam-no, os que não estavam, ou frontalmente se lhe opunham, tentavam trabalhar na sua arte nos limites das possibilidades sem se comprometerem, criando um cinema “caligrafista”, muito estilizado, simbólico, de sofisticadas e inócuas comédias de “telefones brancos”, ou então adaptando obras literárias do século XIX, que tinham muito pouco a ver com a realidade italiana dos anos 30 e 40, até final da guerra. Durante o fascismo, uma nova geração de jovens interessara-se particularmente pela crítica cinematográfica, pela escrita de argumentos, pela realização, muitos como assistentes de realização, e quase todos se reuniram em redor de criações do regime, como o Centro Sperimentale di Cinematografia (CSC), localizado em Roma, fundado em 3 de abril de 1935, embora a Scuola Nazionale di Cinema (então denominada Scuola Nazionale di Cinematografia), já estivesse em atividade na época. Benito Mussolini, o seu filho Vittorio e, sobretudo, Galeazzo Ciano deram grande impulso à criação e manutenção do CSC, bem assim como ao projeto da Cinecittà. O edifício onde se instalou o Centro foi construído em 1935, ao mesmo tempo que a Cinecittà, em frente aos estúdios cinematográficos, na periferia romana. Entre alguns mais, o Centro Sperimentale di Cinematografia formou, entre 1935 e 1945, profissionais como Michelangelo Antonioni, Steno, Alida Valli, Pasqualino De Santis, Pietro Germi, Dino De Laurentiis ou Luigi Zampa, e entre 1945 e 1968, Marco Bellocchio, Liliana Cavani, Vittorio Storaro, Monica Vitti, Néstor Almendros, Tomás Gutiérrez Alea, Claudia Cardinale ou Domenico Modugno.
Mussolini e o filho Vittorio deram grande importância ao cinema, “como elemento de formação e divulgação dos valores do fascismo” e foram também eles, nessa mesma perspectiva de impulsionar o cinema como arte de propaganda, os instigadores do Festival de Cinema de Veneza, que se inaugurou a 6 de agosto de 1932. De início, integrava a Bienal de Arte de Veneza, que de dois em dois anos tentava reunir e dar a conhecer as diversas correntes artísticas europeias. Mas como a pintura, a escultura ou a música não atraíam as massas tanto quanto o desejado, o secretário geral da Bienal, o escultor Antonio Mariani, teve a ideia, ousada para a época, de inserir o cinema nesse evento. Para Mussolini, o Festival era uma bela oportunidade de propaganda política e de ver afluir ao país divisas estrangeiras. O Festival de 1932 acolheu vinte e nove filmes e o de 1934 recebeu cinquenta; participaram dezassete países, entre os quais os Estados Unidos da América. O evento passou a anual, pelo que a terceira edição do Festival ocorreu em 1935. O Palazzo del Cinema foi inaugurado 1937.  Em 1940 e 1941, o Festival foi um acontecimento fundamentalmente político, com a "semana do filme italo-alemão" e, em 1942, foi anulado e ressuscitou em 1946, com a participação de filmes franceses, americanos, ingleses e soviéticos.
Em finais de 1937, Vittorio Mussolini viajou até Hollywood procurando apoio dos estúdios, que o receberam friamente ou mesmo se recusaram a recebê-lo (Goldwyn Mayer, por exemplo). Outra das iniciativas importantes de Vittorio foi a criação da revista “Cinema” que se tornaria ponto de reunião de futuros cineastas e críticos fundadores do neorrealismo. Também como argumentista e produtor, Vittorio, que era piloto de aviação de guerra, se tornou notado, trabalhando com nomes como Rossellini, a quem encomendou três filmes do seu período fascista - “La nave bianca” (1941), “Un pilota retorna” (1942) e “L'uomo dalla croce” (1943) - , Antonioni, Mario Mattoli, entre outros. Estranhamente, a formação oferecida por Vittorio Mussolini aos jovens cinéfilos italianos haveria de se voltar contra as ideias por ele defendidas. Todos se tornaram anti-fascistas, mal terminou a guerra. Quanto a Vittorio, exilou-se na Argentina, regressou a Itália em 1967, e morreu em 1997.

Quando se aproxima o fim da guerra e se verifica a possibilidade de abordar temas proibidos até aí, o próprio fascismo, a guerra e a ocupação alemã, a resistência, o drama diário do povo italiano, este foi o caminho. Mas a esta orientação ideológica (muito condicionada pelos comunistas, que tinham saído vitoriosos da coordenação da Resistência), outra se lhe juntou igualmente muito motivadora da escolha do caminho. Após a derrota, a Itália estava completamente destruída, a indústria cinematográfica praticamente não existia, não havia estúdios funcionais, não havia material técnico em boa qualidade, não havia actores e realizadores (alguns dos que havia ou estavam comprometidos com o fascismo, ou a mudarem de casaca rapidamente, ou envelhecidos, ou em fuga…), não havia capital para obras sumptuosas.
Da reunião destes factores, nasceu um cinema ideologicamente não muito coerente, apesar de nalguns casos de  forte orientação marxista, mas que se podia caracterizar por aspectos significativos para definir um movimento ou uma corrente: filmagens fora dos estúdios, em exteriores ou interiores naturais, pouco material técnico, uso quase exclusivo de película a preto e branco, quase total ausência de actores profissionais, lançamento de uma nova geração de cineastas, saídos da resistência intelectual e cultural ao fascismo, temas da vida do dia-a-dia, assunção de uma voz nova nos ecrãs, o povo autêntico, sem caracterização ou guarda-roupa especial. Esta foi a revolução imposta um tanto pelas disponibilidades técnicas da época e do local, outro tanto pela intencionalidade política, social, cultural e sobretudo cinematográfica.
Nos primeiros tempos, a ortodoxia marxista imperou, mas curiosamente terá sido no cinema que ela se fez menos impositiva. Na literatura, em Itália (e noutros países, como Portugal), ela terá sido mais forte, contagiando mais autores e prolongando no tempo a sua influência. Durante a época fascista, a literatura italiana, para lá de obras apologéticas do regime, era dominada por uma certa vanguarda (o Futurismo marinettiano ou um certo hermetismo formal)  ou por autores como Giovanni Verga e seu “verismo” que irá oscilar entre o fascínio pelo fascismo e interessar jovens cineastas como Visconti, que adapta obras suas em “A Terra Treme”.
Curioso será relembrar alguns escritores italianos que impuseram o neorrealismo desde os anos 40, como Elio Vittorini, Cesare Pavese, Vasco Pratolini, Pier Paolo Pasolini, Italo Calvino, Beppe Fenoglio, Carlo Cassola, Alberto Moravia, Primo Levi, Ignazio Silone, entre alguns mais. Interessante será observar a palavra de um deles referindo-se ao movimento. Escreve Italo Calvino (1964, prefácio a “Il Sentiero Dei Nidi Di Ragno”), que o neorrealismo “non fu una scuola, ma un insieme di voci, in gran parte periferiche, una molteplice scoperta delle diverse Italie, specialmente delle Italie fino allora più sconosciute dalla letteratura”. Também na literatura, portanto, a orientação era diversa, ainda que a necessidade de intervir, de testemunhar fosse unânime.
Tanto na literatura como no cinema, a criação neorrealista procura descrever de imediato a realidade social e humana do país, enquadrando-as no ambiente da época, dando inclusive especial atenção a especificidades regionais e observando o quadro com preocupações éticas e igualmente estéticas. A verdade é que o tipo de rodagem que o neorrealismo impôs veio a influenciar toda a história do cinema posterior. Este tipo de “cinema pobre” sem magia estereotipada, sem grandes recursos, sem o glamour das estrelas e dos estúdios, sem temas fantásticos e fantasistas, esteve na origem de inúmeras experiências em todo o mundo, desde a Nouvelle Vague francesa, passando pelo Free Cinema inglês, pelos novos cinemas que se conheceram na década de 60 na Europa Ocidental e de Leste, pela América Latina, pela India, chegando aos próprios EUA, onde os primeiros títulos italianos de Rossellini e De Sica provocaram ondas de entusiasmo transbordantes. 

Regressando a Itália, em 1945, surge “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini, que inicia formalmente o movimento. Mas antes já tinham aparecido alguns antecedentes, como “I Bambini ci Guardano”, de Vittorio De Sica, “Ossessione”, de Luchino Visconti, ou “Quattro Passi fra la Nuvole”, de Alessandro Blasseti, todos de 1942-44. Os grandes filmes e os maiores cineastas que este movimento revelou situam-se, no entanto, em campos muito diversos: Roberto Rossellini (além de “Roma, Cidade Aberta”, ainda “Libertação” ou “Alemanha Ano Zero”), Vittorio De Sica, (“Ladrões de Bicicletas”, “Humberto D”, “Milagre de Milão”), Luchino Visconti (para lá de “Ossessione”, “A Terra Treme”, “Belíssima”), Federico Fellini (“O Sheik Branco”, “Os Inúteis”, “A Estrada”, “As Noites de Cabiria”), Michelangelo Antonioni (“Agente do Pó”, “Escândalo de Amor”, “As Amigas, “O Grito”), Dino Risi (“Retalhos da Vida”, “A Ultrapassagem”, “Vida Difícil”), Mario Monicelli (“Vida de Cão”, “Polícias e Ladrões”, “Proibito”, “Un eroe dei nostri tempi”, “Gangsters Falhados”, “A Grande Guerra”), Alberto Lattuada (“O Bandido”, “O Delito”, “Sem Piedade”, “O Moinho do Pó”, “Anna”, “O Capote”), Pietro Germi (“La Città si difende”, “O Bandido da Cova do Lobo”, “Gelosia”, “O Ferroviário”, “O Homem de Palha”), Cesare Zavattini (“Retalhos da Vida”), bem acompanhados por alguns realizadores com obra respeitável e interessante, como Luigi Comencini, Carlo Lizani, Giuseppe De Santis, Aldo Vergano, Luciano Emmer, Renato Castellani ou Luigi Zampa, entre outros.
Falar-se num processo comum é possível, mas difícil, mesmo impossível descortinar um ideário colectivo. A religiosidade de Rossellini nem sequer se assemelha à de Fellini, o humanismo de De Sica não se compara com Antonioni, nem mesmo a visão marxista de Visconti tem paralelo na de De Santis, Lizzani ou Emmer. Talvez uma das maiores virtudes deste movimento tenha sido a de permitir analisar a realidade social da Itália do pós-guerra sob diversos pontos de vista que uns aos outros se completam.


PRINCIPAIS FILMES NEOREALISTAS 
(1943-1960)

1942: Quattro Passi fra la Nuvole (Dois Dias Fora da Vida), de Alessandro Blasseti
1943: Obsessão (Ossessione), de Luchino Visconti
1944: I Bambini ci Guardano, de Vittorio De Sica
1945: Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), de Roberto Rossellini
1946: (Sciuscià), de Vittorio De Sica
1946: Libertação (Paisà), de Roberto Rossellini
1946: O Bandido (Il Bandito), de Alberto Lattuada
1946: Um Dia na Vida (Un Giorno nella Vita), de Alessandro Blasetti
1946: (Il Sole Sorge Ancora), de Aldo Vergano
1947: (Caccia Tragica), de Giuseppe De Santis
1947: (Gioventù Perduta), de Pietro Germi
1948: Sem Piedade (Senza Pietà), de Alberto Lattuada
1948: Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero), de Roberto Rossellini
1948: Ladrões de Bicicletas (Ladri di Biciclette), de Vittorio De Sica
1948: A Terra Treme (La Terra Trema), de Luchino Visconti
1948: Em Nome da Lei (In Nome della Legge), de Pietro Germi
1948: Sob o Céu de Roma (Sotto il Sole di Roma), de Renato Castellani
1948: (Anni Difficili), de Luigi Zampa
1948: (Fantasmi del Mare), de Francesco De Robertis
1949: Arroz Amargo (Riso Amaro), de Giuseppe De Santis
1949: É Primavera (È Primavera), de Renato Castellani
1949: (Il Mulatto), de Francesco De Robertis
1949: O Moinho do Rio Pó (Il Mulino del Po), de Alberto Lattuada
1950: Stromboli (Stromboli Terra Di Dio), de Roberto Rossellini
1950: Escândalo de Amor (Cronaca di un Amore), de Michelangelo Antonioni
1950: Não Há Paz Entre as Oliveiras (Non c’è Pace tra gli Ulivi), de Giuseppe De Santis
1950: O Caminho da Esperança (Il Cammino della Speranza), de Pietro Germi
1950: (Gli Amanti di Ravello), de Francesco De Robertis
1950: Domingo de Agosto (Domenica d’Agosto), de Luciano Emmer
1951: Belíssima (Bellissima), de Luchino Visconti
1951: Atenção, Bandidos (Achtung! Banditi!), de Carlo Lizzani
1951: (Luci del varietà), de Federico Fellini, Alberto Lattuada
1951: O Milagre de Milão (Miracolo a Milano), de Vittorio De Sica
1952: Europa 51 (Europa ’51), de Roberto Rossellini
1952: O Sheik Branco (Lo Sceicco Bianco), de Federico Fellini
1952: O Bandido da Cova do Lobo (Il Brigante di Tacca del Lupo), de Pietro Germi
1952: O Capote (Il Cappotto), de Alberto Lattuada
1952: O Pão Nosso de Cada Dia (Roma Ore 11), de Giuseppe De Santis
1952: Dez Réis de Esperança (Due Soldi di Speranza), de Renato Castellani
1952: Processo Contra a Cidade (Processo Alla Città), de Luigi Zampa
1952: (Carica Eroica), de Francesco De Robertis
1952: Humberto D (Umberto D.), de Vittorio De Sica
1953: Retalhos da Vida (L'Amore in Città), de Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Alberto Lattuada, Carlo Lizzani, Francesco Maselli, Dino Risi, Cesare Zavattini
1953: A Dama Sem Camélias (La Signora Senza Camelie), de Michelangelo Antonioni
1953: Os Inúteis (I Vitelloni), de Federico Fellini
1953: Estação Terminus (Stazione Termini), de Vittorio De Sica
1953: Viagem em Itália (Viaggio in Italia), de Roberto Rossellini
1953: Os Sete da Ursa Maior (I Sette dell’Orsa Maggiore), de Francesco De Robertis
1953: Nós, Mulheres (Siamo Donne), de Gianni Franciolini, Alfredo Guarini, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, Luigi Zampa
1953: Os Vencidos (I Vinti), de Michelangelo Antonioni
1953: A Loba (La Lupa), de Alberto Lattuada
1954: A Estrada (La Strada), de Federico Fellini
1954: (Cronache di Poveri Amanti), de Carlo Lizzani
1955: Os Evadidos (Gli Sbandati), de Francesco Maselli
1955: As Amigas (Le Amiche), de Michelangelo Antonioni
1955: O Tecto (Il Tetto), de Vittorio De Sica
1955: O Conto do Vigário (Il Bidone), de Federico Fellini
1956: O Ferroviário (Il Ferroviere), de Pietro Germi
1957: O Grito (Il Grido), de Michelangelo Antonioni
1957: As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria), de Federico Fellini
1958: (Ragazzi della Marina), de Francesco De Robertis
1958: O Homem de Palha (L'Uomo di Paglia), de Pietro Germi
1960: Era Noite em Roma (Era Notte a Roma), de Roberto Rossellini

1960: Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli), de Luchino Visconti

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