segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

SESSÃO 1 - ROMA, CIDADE ABERTA



ROMA, CIDADE ABERTA (1945)

“Ossessione” é de 1943, “La Terra Trema: Episodio del Mare” é de 1948, ambos de Visconti. “Roma, Città Aperta”, de 1945, traz a assinatura de Roberto Rossellini. Indiscutivelmente, são estes os três filmes mais importantes a marcarem o início do chamado neo-realismo. Mas desde logo as diferenças são algumas, bem assim como as características comuns. Neste caso, uma enorme necessidade de falar de temas simples e populares, de trazer para o ecrã o povo que dali andava arredado; a falta de meios que impunha um cinema pobre, tecnicamente imperfeito, mas esteticamente depurado, eticamente honesto, politicamente intencional; a utilização de actores não profissionais. Entre as diferenças, estas eram de raiz ideológica, ainda que nos primeiros tempos a união contra o invasor nazi e o fascismo mussoliniano disfarçassem as divergências. Um Visconti aristocrata e marxista, ao lado de um Fellini religioso mas libertário, um De Sica humanista, um Rossellini metafísico e democrata cristão, um Zavatini ou um Guiseppe De Santis abertamente comunistas são algumas das opções que logo se destacaram.
Rossellini é dos casos mais desconcertantes deste grupo. Inicialmente documentarista, assina depois três filmes que ficaram conhecidos pela sua “trilogia fascista”, “La Nave Bianca” (1941), “Un Pilota Ritorna” (1942) e “L'Uomo dalla Croce” (1943) (rodados na época do fascismo italiano, com fundos dos organismos oficiais e largamente premiados pelas entidades mussolinianas), passando imediatamente após a Libertação a uma nova “trilogia da guerra”, com “Roma, Cidade Aberta”, “Libertação” e “Alemanha, Ano Zero”, todos eles bem enquadrados no neo-realismo.
Durante uns tempos, o reconhecimento de Rossellini não foi unânime (ainda hoje não o é), tendo mesmo sido acusado de ter “passado do fascismo para a democracia cristã” por alguma crítica mais ortodoxa. Mas com o aparecimento dos “Cahiers du Cinéma” e de André Bazin, Truffaut, Rivette e alguns mais, Rossellini não foi só reabilitado, como colocado no lugar de mestre incontestável da modernidade, cineasta farol de um novo cinema. Nenhum outro cineasta italiano mereceu tantos elogios dos franceses desta corrente como Rossellini.
Em 1944 pode dizer-se que a indústria italiana de cinema tinha sido completamente destruída, não existiam estúdios, nem material técnico, nem laboratórios, nem sequer quantidade suficiente de uma mesma película para uma longa-metragem. Quando, em 1995, a “Cineteca Nazionale” restaurou o negativo de “Roma, Cidade Aberta” percebeu que o original era composto por três tipos de película: Ferrania C6, em exteriores, Agfa Super Pan e Agfa Ultra Rapid em interiores. Mesmo dentro de cada tipo de película existiam consideráveis alterações de densidade. Nenhuma unidade de tom era possível. Mas, um pouco também por causa disso, o que resultaria daí ofereceria uma tonalidade documental que agradava bastante ao autor.
Quando a II Guerra Mundial entrava nos seus últimos meses, Rossellini abandonava a realização de um filme, “Desiderio”, pois não tinha condições para o terminar (haveria de ser concluído por Marcello Pagliero, em 1946). Rossellini, porém, queria filmar a história de um padre católico, Don Pieto Morosini, que tinha sido fuzilado pelos nazis por ter auxiliado alguns resistentes italianos. O actor Aldo Fabrizi era o preferido para interpretar este papel e Rossellini, amigo de Fellini, pede a este para interceder junto do actor por forma a poder contar com a sua colaboração. Havia ainda a hipótese de rodar um documentário sobre o papel das crianças italianas na luta contra o opressor. Fellini e Sergio Amidei convencem Rossellini a reunir os dois projectos e escreveram um argumento ficcionado sobre estes temas. Estávamos em Agosto de 1944, dois meses depois das tropas norte-americanas terem libertado Roma da ocupação nazi. “Roma, Città Aperta” seria o cenário. Rossellini queria sinceridade máxima, autenticidade, total ausência de efeitos, nenhuma espectacularidade, actores predominantemente não profissionais, recrutados na rua, um olhar sem complacência. As falhas técnicas funcionariam como elemento estilístico, seria um cinema pobre, a película era comprada em pequenas quantidades, de qualidade desigual, por vezes sem qualidade, sem prazos de validade. Rodava-se com a luz natural, ou quase. A realidade sem subterfúgios. Roma devastada sem retoques. O povo italiano perante a tirania brutal do invasor, os resistentes em confronto com a opressão, o sentir do cidadão comum ao lado do guerrilheiro e frente ao oficial alemão. As crianças em magotes a fazer explodir o que pudessem. Comunistas, como o engenheiro que é denunciado por uma italiana vendida por um casaco de peles, lado a lado com padres católicos que os escondem em conventos. Mulheres indomáveis que gritam a dor e são assassinadas friamente com tiros de rajadas, no meio das ruas. Torturas intoleráveis e fuzilamentos sumários. “Roma, Città Aperta” quando os nazis sentem apertar à sua volta a ofensiva aliada e recrudescer a actividade dos “partigiani”, quando a batalha individual enxameia as ruas romanas, quando o sangue se verte generosamente em nome da liberdade, numa altura em que a luta é unitária.
Quando da sua estreia, a recepção italiana não foi entusiástica. O público não queria voltar a encarar a tragédia de que apenas saía, em condições traumáticas. Mas, fora de Itália, nos EUA ou em França, a recepção foi de triunfo crítico e mesmo popular. Juntamente com outras obras, como “Sciusciá”, “Ladrões de Bicicletas”, “A Terra Treme”, chamou a atenção para a cinematografia italiana e para o que se ficaria a conhecer por neo-realismo. Rossellini aproveitou a onda para tentar explicar que alguns filmes seus anteriores, como “La Nave Bianca”, já apresentavam características semelhantes às de “Roma, Cidade Aberta”, procurando deste modo justificar ter sido ele o verdadeiro criador desta corrente, o que alguns outros, nomeadamente os críticos marxistas, Aristarco, De Santis, Verdone, entre outros, não aceitam plenamente. Para estes, o neo-realismo era uma questão moral, mas era igualmente uma questão política, onde a luta de classes não podia deixar de figurar. Rossellini tinha uma perspectiva diversa, para ele bastava apresentar a realidade na sua simplicidade, na sua secura, para se atingir um quase estado de graça, que muitas obras suas ulteriores iriam confirmar.
De resto, num elenco quase sem actores, Aldo Fabrizi é um padre de uma humanidade e doçura extrema, que consegue todavia arrostar com o seu calvário com a maior dignidade, Anna Magnani, uma mulher que se celebraria, a partir daí, como símbolo da “mamma Roma”, com um desempenho que tornaria a sua presença algo de absolutamente inesquecível (sobretudo a tão citada cena de rua em que é alvejada), e Marcello Pagliero (que, além de actor, foi ainda argumentista e realizador), um resistente admirável na obstinácia com que enfrenta a tortura e a dor.
Finalmente, ainda em 1946, o Festival de Cannes atribui o Grande Prémio ao filme e o Sindacato Nazionale dei Giornalisti Cinematografici Italiani confere o Nastro d'Argento a esta obra, considerando-a a melhor italiana do ano, bem assim como o prémio de Melhor Actriz Secundária a Anna Magnani, igualmente em 1946. Na América, o National Board of Review premeia “Roma, Cidade Aberta”, com o prémio de Melhor Filme em Língua Estrangeira e Anna Mangani como Melhor Actriz, e o New York Film Critics Circle Awards, considera-o igualmente o Melhor Filme em Língua Estrangeira no ano de 46.

ROMA, CIDADE ABERTA
Título original: Roma, Città Aperta

Realização: Roberto Rossellini (Itália, 1945); Argumento: Sergio Amidei, Federico Fellini, Roberto Rossellini, Sergio Amidei, Alberto Consiglio; Produção: Giuseppe Amato, Ferruccio De Martino, Rod E. Geiger, Roberto Rossellini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Ubaldo Arata; Montagem: Eraldo Da Roma, Jolanda Benvenuti; Design de produção: Rosario Megna; Direcção de produção: Ferruccio De Martino, Mario Del Papa; Assistentes de realização: Sergio Amidei, Federico Fellini; Som: Raffaele Del Monte; Efeitos visuais: Stefano Ballirano, Stefano Camberini, Pablo Mariano Picabea, Paolo Verrucci, Stefanacci; Companhias de produção: Excelsa Film; Intérpretes: Aldo Fabrizi (Don Pietro Pellegrini), Anna Magnani (Pina), Marcello Pagliero (Giorgio Manfredi / Luigi Ferraris), Vito Annichiarico (Piccolo Marcello), Nando Bruno (Agostino), Harry Feist (Major Bergmann), Giovanna Galletti (Ingrid), Francesco Grandjacquet (Francesco), Eduardo Passarelli, Maria Michi, Carla Rovere. Carlo Sindici, Joop van Hulzen, Ákos Tolnay, Caterina Di Furia, Laura Clara Giudice, Turi Pandolfini, Amalia Pellegrini, Spartaco Ricci, Doretta Sestan, Alberto Tavazzi, etc. Duração: 100 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 13 de Outubro de 1947.

Sem comentários:

Enviar um comentário