domingo, 19 de fevereiro de 2017

FEDERICO FELLINI (1920-1993)



FEDERICO FELLINI (1920-1993)

A biografia de Federico Fellini está cheia de incertezas, em parte por causa do próprio cineasta, que por vezes inventava episódios da sua vida. Terá nascido a 20 de Janeiro de 1920, em Rimini (Itália), filho de Ida Barbiano e de Urbano Fellini. Dois irmãos mais novos: Ricardo e Maddalena. Fala-se de um colégio religioso que haveria de marcar toda a sua adolescência e vincar um anticlericalismo que se encontra presente em grande parte da sua obra cinematográfica. Diz-se que frequentou a escola das Irmãs de San Vicenzo, depois a escola primária Teatini. Mais tarde, em 1930, entra para o Gimnasio-Liceo Giulio Cesare, localizado perto do Grande Hotel de Rimini. É seu colega aquele que ficará conhecido por Titta e que ira ser a grande influência de “Amarcord”. Desde muito novo que ama o circo e se interessa pela caricatura. Durante um acampamento das Juventudes Fascistas, em Verrucchio, desenha várias caricaturas de participantes. Em 1937, o dono do Cinema Fulgor, encomenda-lhe uma série de caricaturas de actores americanos. Publica depois desenhos no semanário “La Domenica del Corriere” e no satírico “Nerbini”. Em 1939, chega a Roma, inscreve-se em Direito, mas não é aceite.
Durante a guerra desenhou alguns episódios famosos de histórias em quadradinhos e colabora na rádio em programas humorísticos. Trabalhou também como jornalista. Encontra Giuletta Masina com quem casa a 30 de Outubro de 1943. Entretanto, em 1940, torna-se gagman de Aldo Fabrizzi e de um dos primeiros actores cómicos italianos, célebre na época, Macario (com quem trabalha em filmes dirigidos por Mario Mattoli). Em 1945, aparece como assistente de Roberto Rossellini, em “Roma, Città Aperta”. Nasce um filho que morre precocemente, devido a insuficiência respiratória. Colabora em inúmeros argumentos, é assistente de realização, continuando o seu trabalho como jornalista, humorista, caricaturista.
No ano seguinte, de novo com Rossellini, colabora em “Paisá”, é co-argumentista de “II Crime di Giovanni Episcopo”, de Alberto Lattuada. Em 1947, volta a trabalhar com Lattuada: “Sensa Pietá”. Rossellini chama-o, em 1948, para “Amore”. É assistente de Lattuada, em “II Miulino del Pó” e de Rossellini em “Francesco Giullare di Dio”. Em 1950, aparece como assistente de Pietro Germi, em “II Camino della Speranza” e, com Lattuada, co-dirige o seu primeiro filme: “Luci del Varietà”. Um ano depois, colabora em “Europa 51”, de Rossellini e em 1952 assiste novamente a Germi, em “II Brigante di Tasca del Lupo”. “O Sheik Branco”, em 1951, é o seu primeiro filme como realizador, a solo. Inicia a sua colaboração com Nino Rota. Recebe o Leão de Prata com “Os Inúteis”, em Veneza, e repete o sucesso com “A Estrada”, com que recebe o seu primeiro Oscar. “As Noites de Cabíria” arrecada segundo Oscar, e “Fellini 8 ½” o terceiro. Entretanto, “A Doce Vida” é um sucesso brilhante, recebendo a Palma de Ouro de Cannes.
Em 1961, conhece o psicanalista Ernest Bernhard e apaixona-se pelas teorias de Jung, que o influenciarão nos seus filmes futuros. Em 1967, ultrapassa um enfarte, depois de algum tempo hospitalizado. “Amarcord”, em 1972, traz-lhe um novo Oscar, de Melhor Filme em Língua não Inglesa. Entretanto, o seu cinema oscila entre a superprodução e o filme de pequeno orçamento, entre “Satiricon”, “Roma”, “Casanova”, “A Cidade das Mulheres” e “Os Palhaços”, “O Navio”, “Ensaio de Orquestra” ou “A Voz da Lua”, seu derradeiro filme. Em 1979 morre Nino Rota, o que Fellini sente profundamente. Caricatura a televisão de Berlusconi em “Ginger e Fred” e sofre novo ataque cardíaco em 1985.
1993: recebe um Oscar honorífico por toda a carreira. Em Agosto, sofre, em Rimini, uma embolia cerebral. O ataque repete-se em Roma, tempos depois. Morre a 31 de Outubro. A câmara ardente é instalada num dos estúdios da Cinecittá. No ano seguinte, a 23 de Março, morre Giulietta Masina.
Com Visconti, Rossellini, Lattuada, De Sica, Germi e alguns mais, é um dos impulsionadores da primeira época do neo-realismo, que nos anos de 40 e inícios dos 50, no pós-guerra, devolveria ao cinema italiano uma dignidade estética e, sobretudo, ética que restauraria o prestígio perdido e influenciaria toda a cinematografia moderna. A partir de início dos anos 60, torna-se num dos mestres do cinema mundial, com uma filmografia não muito extensa, mas de uma coerência e significado indesmentíveis.


Filmografia
Como gagman de Macario e Mario Mattoli
1938: Lo Vedi come soi., Lo Vedi come sei?!, de Mario Mattoli
1940: Non me Lo direi!, de Mario Mattoli
1940: Il pirata Sono io!, de Mario Mattoli

Como argumentista (quase sempre co-argumentista)
1939: Imputato, Alzatevi!, de Mario Mattoli
1941: Documento Z3, de Alfredo Guarini (não creditado no genérico)
1942: Avanti c'è Posto, de Mario Bonnard (não creditado no genérico)
1942: I Cavalieri del Deserto, de Gino Talamo, Osvaldo Valenti
1942: Quarta Pagina (O Mistério da Quarta Página), de Nicola Manzari
1943: Apparizione, de Jean de Limur (não creditado no genérico)
1943: Campo de’ Fiori, de Mario Bonnard
1943: Tutta la Cittá Canta, de Riccardo Freda
1943: L'Ultima Carrozzella, de Mario Mattoli
1945: Roma, Città Aperta (Roma Cidade Aberta), de Roberto Rosselini (neste filme é também assistente de realização)
1945: Chi l'ha visto?, de Goffredo Alessandrini
1946: Paisá (Libertação) de Roberto Rossellini (neste filme é também assistente de realização)
1947: Il Delitto di Giovanni Episcopo (A Historia do Meu Crime) de Alberto Lattuada
1947: Il Passatore, de Duilio Coletti
1947: Fumeria d'Oppio, de Raffaello Matarazzo
1947: L' Ebreo Errante, de Goffredo Alessandrini
1948: L'Amore (O Amor), de Roberto Rossellini, episódio “Il Miracolo” (neste filme é também assistente de realização e actor)
1948: Il Mulino del Pó (O Moinho do Rio Pó), de Alberto Lattuada
1948: Senza Pietà (Sem Piedade), de Alberto Lattuada
1948: La Cittá Dolente, de Mario Bonnard
1949: In Nome della Legge (Em Nome da Lei), de Pietro Gerrni
1950: Il Cammino della Speranza (O Caminho da Esperança), de Pietro Germi
1950: Francesco, Giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos), de Roberto Rossellini
1950: Luci del Varietà, de Federico Fellini e Alberto Lattuada
1951: La Città si Difende (A Cidade Defende-se), de Pietro Germi
1951: Cameriera bella Presenza Offresi..., de Giorgio Pàstina
1952: Il Brigante di Tacca del Lupo (O Bandido da Cova do Lobo), de Pietro Germi
1952: Europa '51 (Europa 51), de Roberto Rossellini
1952: Lo Sceicco Bianco (O Sheik Branco), de Federico Fellini
1953: I Vitelloni (Os Inúteis), de Federico Fellini
1953: L'Amore in Città (Retalhos da Vida), episódio “Agenzia matrimoniale”
1954: La Strada (A Estrada), de Federico Fellini (1954)
1955: Il Bidone (O Conto do Vigário), de Federico Fellini (1955)
1957: Le Notti di Cabiria (As Noites de Cabíria), de Federico Fellini (1957)
1958: Fortunella, de Eduardo De Filippo (1958)
1960: La Dolce Vita (A Doce Vida), de Federico Fellini
1962: Boccaccio '70 (1962) - episódio “Le Tentazioni del dottor Antonio”
1963: 8½ (Fellini 8 ½), de Federico Fellini
1965: Giulietta degli spiriti (Julieta dos Espíritos), de Federico Fellini
1968: Tre Passi nel Delirio (Histórias Extraordinárias) - episódio Toby Dammit
1969: Sweet Charity (Sweet Charity - A Rapariga que Queria Ser Amada), de Bob Fosse
1969: Fellini Satyricon (Fellini – Satyricon), de Federico Fellini
1969: Block-notes di un regista (Diário de um Realizador), de Federico Fellini - documentário televisivo
1970: I Clowns (Os Palhaços), de Federico Fellini
1972: Roma (Roma de Fellini), de Federico Fellini
1973: Amarcord (Amarcord), de Federico Fellini
1976: Il Casanova di Federico Fellini (O Casanova de Federico Fellini), de Federico Fellini
1979: Prova d'Orchestra (Ensaio de Orquestra), de Federico Fellini
1980: La Città delle Donne (A Cidade das Mulheres), de Federico Fellini
1983: E la Nave va (O Navio), de Federico Fellini
1985: Ginger e Fred (Ginger e Fred), de Federico Fellini
1987: Intervista (Entrevista), de Federico Fellini
1990: La Voce della Luna (A Voz da Lua), de Federico Fellini

Como realizador
1950: Luci del Varietà (co-realização com Alberto Lattuada)
1952: Lo Sceicco Bianco (O Sheik Branco)
1953: I Vitelloni (Os Inúteis)
1953: L'Amore in Città (Retalhos da Vida)
Episódio “Un ‘Agenzia Matrimoniale” (outros realizadores: Michelangelo Antonioni, Dino Risi, Francesco Masselli, Cesare Zavattini, Carlo Lizani e Alberto Lattuada)
1954: La Strada (A Estrada) 
1955: Il Bidone (O Conto do Vigário) 
1957: Le Notti di Cabiria (As Noites de Cabíria)
1960: La Dolce Vita (A Doce Vida)
1962: Boccaccio '70 (Boccaccio '70)
Episódio “Le Tentazioni del Dottor Antonio” (outros realizadores: Luchino Visconti e Vittorio De Sica)
1963: 8½ (Fellini 8 ½) 
1965: Giulietta degli Spiriti (Julieta dos Espíritos)
1968: Tre Passi nel Delirio ou Histoires Extraordinaires (Histórias Extraordinárias)
Episódio “Toby Dammit” (outros realizadores: Louis Malle e Roger Vadim)
1969: Satyricon (Fellini – Satyricon)
1969: Block-notes di un Regista (Diário de um Realizador) (TV)
1971: I Clowns (Os Palhaços)
1972: Roma (Roma de Fellini)
1973: Amarcord (Amarcord)
1976: Il Casanova di Federico Fellini (O Casanova de Federico Fellini)
1978: Prova d'Orchestra (Ensaio de Orquestra)
1980: La Città delle Donne (A Cidade das Mulheres)
1983: E la Nave Va (O Navio)
1986: Ginger e Fred (Ginger e Fred)
1987: Intervista (Entrevista)
1990: La Voce della Luna (A Voz da Lua)

Como actor
1948: L'Amore (O Amor), de Roberto Rossellini
1972: Roma (Roma de Fellini), de Federico Fellini
1974: C'Eravamo Tanto Amati (Tão Amigos que nós eramos), de Ettore Scola
1983: Il Tassinaro, de Alberto Sordi
1987: Intervista (Entrevista), de Federico Fellini
2002: Fellini, Sono un Gran Bugiardo, de Damian Pettigrew


O CINEMA SEGUNDO FEDERICO FELLINI
Nunca exerço juízos morais porque não me sinto capacitado para tanto. Não sou censor, nem padre, nem político. Não gosto de me analisar, não sou orador, nem filósofo, nem teórico. Sou apenas um contador de histórias, e o cinema é o meu ofício. (1971)

Não há nada mais triste do que o riso; nada é mais belo, magnífico, estimulante e enriquecedor do que o terror do desespero total. Acho que, enquanto vivem, todos os homens são prisioneiros deste medo terrível, no qual toda a prosperidade está votada ao fracasso, mas que preservam, mesmo no abismo mais fundo, essa liberdade esperançosa que lhes permite sorrir em situações aparentemente desesperadas. É por isso que o objectivo dos verdadeiros autores de comédia - quer dizer, dos mais profundos e honestos - não é de modo nenhum a simples diversão, mas rasgar feridas dolorosas com a crueldade de as tomar mais sentidas. (1971)

Na minha opinião, “A Estrada” procura realizar a experiência que um filósofo, Emmanuel Mounier, muito bem definiu como a mais importante e básica para abrir qualquer perspectiva social: a experiência comunitária entre dois seres humanos. Quer dizer, para aprender a riqueza e a possibilidade da vida social, hoje que se fala tanto de socialismo, é, antes de mais, importante aprender a estar, muito simplesmente, com outro homem: penso que isto é o que todas as sociedades devem aprender e que, se não se consegue superar este ponto de partida tão humilde mas necessário, talvez amanhã venhamos a estar perante uma sociedade exteriormente bem organizada e publicamente perfeita e sem mácula, na qual, porém, as relações privadas, as relações entre homem e homem, ou entre as pessoas, se mostrarão reduzidas ao vazio, à indiferença, ao isolamento, à impenetrabilidade. (1955)

“Cinéma-verité”? Prefiro “cinema-mentira”. Uma mentira é sempre mais interessante do que a verdade. A mentira é a alma da arte do espectáculo, e eu adoro espectáculo. A ficção pode sempre ter uma verdade maior do que a realidade óbvia de todos os dias. Não é preciso que as coisas que se mostram sejam autênticas. Em regra, são melhores quando não o são. O que tem de ser autêntico é a emoção que se sente e se quer exprimir. (1971)

O colaborador mais precioso que tive foi Nino Rota. Tinha uma imaginação geométrica, uma visão musical de esferas celestes, pelo que não tinha necessidade de ver as imagens dos meus filmes. Quando lhe perguntava que motivos tinha em mente para comentar esta ou aquela sequência, sentia claramente que as imagens não lhe diziam respeito: o seu era um mundo interior, a que a realidade tinha pouca possibilidade de acesso. Vivia a música com a liberdade e a facilidade de uma criatura viva numa dimensão que lhe é espontaneamente congenial. (1983)

O cinema como negócio é macabro. Grotesco. E uma mistura de jogo de futebol e de bordel. (1965)

Quando decido fazer um filme, o meu estímulo inicial é a assinatura do contrato. (1971)

Geralmente, os desenhos que faço só têm uma razão funcional e estão estritamente ligados ao meu trabalho de realizador. Desde a infância, nunca desenhei as pessoas da forma como as via diante de mim, mas sim da maneira como haviam ficado na minha memória. O desenho desata a minha fantasia. O desenho é o meu primeiro passo para decifrar. Muito mais difícil é encontrar o actor que se ajuste ao desenho... Quando Giulietta (Massina) via que eu desenhava um pequeno círculo num papel, ela sustinha a respiração. Sabia que era o começo. O círculo era o seu rosto.
Sei que vivo num mundo de fantasias. Mas prefiro que seja assim e irrito-me com tudo o que perturba a minha visão. A vida real não me interessa. Gosto de observá-la, mas no fundo apenas para dar rédea solta a minha fantasia. A fantasia tem uma dimensão muito mais real do que aquela que nos parece ser a dimensão física.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

SESSÃO 8: BELISSIMA


BELÍSSIMA (1952)

“Bellissima” parte de uma ideia de Cesare Zavattini, mas, segundo se sabe, muito alterada pelo realizador e os seus colaboradores argumentistas, Suso Cecchi d'Amico e Francesco Rosi. Mas há também quem afirme, muito embora mantendo o facto da ideia inicial ter sido escrita por Zavattini, que Visconti ficou interessado neste filme quando um dia marcou um teste para crianças na Cinecittà e apareceram centenas de mães com as filhas, acorrendo à chamada, tal como as vemos no início da obra. O mais certo é que ambas as hipóteses estejam certas e uma à outra se completem.
Interessante será, todavia, perceber o que era a ideia original de Zavattini e as principais modificações introduzidas. Vejamos, portanto, o que é o filme: Maddalena Cecconi (Anna Magnani) é uma mulher popular, uma romana típica, intrépida e imparável no discurso, que tem uma filha, Maria, e sabe que o realizador Alessandro Blasetti procura uma criança de 6 ou 7 anos para protagonizar o seu próximo filme. Contra o parecer do pai leva-a á primeira audição, onde tem de disputar o lugar ao lado de centenas de outras candidatas. Aldraba na idade, mas depois tudo faz para que Maria vá ate final, arranja-lhe o melhor vestidinho possível, leva-a ao cabeleireiro, oferece-lhe aulas de música, deixa-se convencer por uma velha actriz que quer dar aulas de representação à miúda, e vai distribuindo injecções pelo bairro todo para pagar os gastos. Atira-se mesmo às economias que se destinavam à nova casa. Ela quer que a sua filha, triunfe, seja uma vedeta, entre no cinema que tanto a fascina. Nem que tenha de pagar uma bela quantia para meterem cunhas a este e àquela, dinheiro que acaba por ficar nas mãos fraudulentas de Alberto Annovazzi (Walter Chiari), que com ele compra uma lambreta. Alberto gostaria de levar o seu encanto um pouco mais longe, mas a decência de Maddalena impede-o.
O cinema, aliás, é fonte de devaneio para todas aquelas mães que sonham com igual destino para as suas filhas. É o fascínio do cinema a impor-se sobre a realidade do dia-a-dia. Maddalena vive num bairro pobre, arranja discussões constantes com o marido que a vai aturando, não é bem vista pela sogra, e tem as vizinhas à perna cada vez que os gritos em sua casa chegam às escadas. Por esta altura, nos anos 50, a crítica marxista falava muito da alienação, e gostava de chamar ao cinema uma “fábrica de sonhos”, em oposição ao cinema que propunham, um olhar directo sobre a realidade e os seus problemas, se possível com uma orientação bem expressa no sentido dos seus propósitos.

“Belissima” é, pois, a análise de uma alienação, a alienação pelo espectáculo, pelo cinema. Mais tarde, em “Rocco e os seus Irmãos” será o boxe, hoje em dia pode e deve continuar-se a falar de alienação quanto aos “reality shows”, ao mundo do espectáculo, sobretudo na música, às telenovelas, onde se revelam centenas de “novas promessas”, muitas das quais fica pelo primeiro ensaio, ao universo do desporto, sobretudo o futebol. Andy Warhol chamou-lhe a necessidade de “quinze minutos de fama”. Agora os “quinze minutos de fama” andam muito associados a alguns milhões que se possam arrecadar sem grande esforço.
Mas no final tudo se precipita. Maria vai até ao derradeiro teste, mas Maddalena não consegue ficar cá fora à espera dos resultados. Vai furando até conseguir ver a projecção do teste, na sala das máquinas e aí descobre que o teste é motivo de galhofa geral, quando Maria chora. É aí que ela percebe a indignidade do que está a fazer e recua. A sua Maria não será actriz, mesmo que no final acabe por ser ela a eleita por Blasetti, mesmo que lhe ofereçam milhares de liras pela assinatura do contrato.
Ora bem no argumento de Zavattini, esta protagonista era uma mulher da classe média, da média burguesia, o que certamente permitiria uma crítica forte a esta classe social. Visconti colocou-a no meio do povo, o que pode estender a crítica a esta alienação a todas as classes sociais, e tem ainda a vantagem de permitir a esta mulher a adopção de uma nobre atitude, uma consciencialização do erro, mesmo com necessidades económicas flagrantes.
Outra alteração significativa tem a ver com o desfecho: para Zavattini Maria era recusada. Para Visconti, Blasetti e o mundo do cinema aceita-a, é a mãe de Maria quem recusa a entrega da criança ao sacrifício. O que tem duas leituras curiosas. Por um lado, ressalva-se o cinema, não se atira sobre ele o opróbrio da fábrica de alienações. Apesar de haver muitos aldrabões no meio, o cinema sobrevive. A questão central do filme transita para a mãe: ela é que se deixou alienar pelo sonho do cinema, ela é que tem de formar a filha e controlar-se a ela própria. O cinema, como qualquer actividade humana, encerra uma multiplicidade de perigos. Somos nós que nos temos de defender e mantermo-nos alerta.
Há, aliás, no filme uma sequência particularmente interessante neste sentido. Quando procura entrar na cabine de projecção, Maddalena conversa com uma montadora dos estúdios, Liliana Mancini. Tal como muitos outros personagens no filme também Liliana se interpreta a si própria e conta a sua história verídica. Agora é montadora, mas outrora foi actriz. Um dia o realizador Renato Castellani parou, olhou para ela e convidou-a a protagonizar o seu próximo filme, “Sous le Soleil de Rome” (Sob o Céu de Roma, 1948). "Escolheram-me porque eu tinha o tipo necessário para o filme. Isso subiu-me à cabeça, deixei o emprego e o namorado, mas depois percebi que não era actriz”. O que pode levar mais longe a questão: nem todos nasceram para ser vedetas, mas há muitas formas de se sonhar com o cinema e de o servir.
Já depois de recusar a ida da filha para o cinema, abraçada ao marido, Maddalena sobressalta-se. Muito perto de si, passa um filme. Ela sorri e diz: “É Burt Lancaster! Muito sedutor…” Acrescenta que está a brincar. Não está. Ela vai continuar a gostar de cinema e de Burt Lancaster. Visconti também. Tanto assim que o irá contratar para duas obras-primas suas, “O Leopardo” e “Violência e Paixão”.
“Belíssima” é uma obra belíssima, que se intromete pelos caminhos do cinema, criticando alguns dos seus processos, mas sobretudo alertando o espectador para esses perigos. Toda a estrutura narrativa é muito bem desenvolvida, a fotografia, a música, a montagem, excelentes, mas o brilho assenta todo no corpo de uma actriz sublime: Anna Magnani. Ela é a alma desta obra vulcânica, irrompe como um furacão de início a fim, e leva a imagem da romana a ficar-lhe para sempre indissociavelmente ligada. O seu trabalho é fulgurante. Inesquecível. Um grande filme com uma actriz como há poucas. 

BELÍSSIMA
Título original: Bellissima

Realização: Luchino Visconti (Itália, 1952); Argumento: Suso Cecchi D'Amico, Francesco Rosi e Luchino Visconti, segundo história de Cesare Zavattini; Produção: Salvo D'Angelo; Música: Franco Mannino, segundo Gaetano Donizetti ("L'Elisir d'Amore"); com Orchestra Sinfonica del Teatro dell'Opera, conduzida por Franco Ferrara; Fotografia (P/B): Piero Portalupi, Paul Ronald; Montagem: Mario Serandrei; Design de produção: Gianni Polidori; Guarda-roupa: Piero Tosi; Maquilhagem: Alberto De Rossi; Direcção de produção: Vittorio Glori, Paolo Moffa, Orlando Orsini; Assistentes de realização: Francesco Rosi, Franco Zeffirelli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Ovidio Del Grande; Companhia de produção: CEI Incom; Intérpretes: Anna Magnani (Maddalena Cecconi), Walter Chiari (Alberto Annovazzi), Tina Apicella (Maria Cecconi), Gastone Renzelli (Spartaco Cecconi), Tecla Scarano (Tilde Spernanzoni), Lola Braccini (mulher do fotógrafo), Arturo Bragaglia (fotógrafo), Nora Ricci, Vittorina Benvenuti, Linda Sini, Teresa Battaggi, Gisella Monaldi, Amalia Pellegrini, Luciana Ricci, Giuseppina Arena, Liliana Mancini, Alessandro Blasetti, Vittorio Glori, Mario Chiari, Luigi Filippo D'Amico, George Tapparelli, Luciano Caruso, Michele Di Giulio, Mario Donatone, Pietro Fumelli, Lilly Marchi, Anna Nighel, Lina Rossoni, Franco Ferrara, Corrado Mantoni, Sonia Marinelli, Guido Martufi, Vittorio Musy Glori, Scuola di Ballo del Teatro dell'Opera, Orchestra Sinfonica della Radiotelevisione Italiana, Coro della Radiotelevisione Italiana, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 24 de Maio de 1955.

SESSÃO 7: A TERRA TREME



A TERRA TREME (1948)

Em 1943, Visconti estreia com polémica, seguida de proibição total da censura “Obsessão”. No mesmo ano, a 23 de Julho, Mussolini é preso e o seu sucessor, Pietro Badoglio, dissolve o partido fascista. Os alemães reagem, invadem a Itália, entram em Roma. A casa real e o governo deslocam-se para o Sul, onde ingleses e norte-americanos tinham desembarcado, libertando a zona de fascistas. A Itália é um país inseguro e Visconti, como a maioria dos artistas e intelectuais anti-fascistas, vive em sobressalto. Em Roma a sua casa serve de refúgio, é assaltada pelas forças policiais, os amigos são presos, um deles aparece assassinado na fossa Ardeatine. Visconti também é preso, a 15 de Abril de 1944, e encarcerado na Pensão Jaccarino, onde se encontrava a Esquadra Especial Italiana, depois transferido para San Gregorio, um hospital prisão, mas por pouco tempo. A 4 de Junho, as forças aliadas entram em Roma e é libertado. A guerra ainda não acabou, mas inicia-se a reconstrução de uma nova estrutura social. Visconti integra o grupo de homens de cinema que institui a “Unione Lavoratori dello Spettacolo”, ao lado de Umberto Barbaro, Mario Camerini, Mario Chiari, Mario Soldati, que organiza a primeira purga de colaboracionistas. Mas, ao mesmo tempo, é urgente regressar à actividade criativa. Visconti pensa e escreve vários guiões que, por uma razão ou outra, não se concretizam. Volta-se então para o teatro e encena, entre 45 e 47, onze peças, com bons resultados, de autores como Anouilh, Sartre ou Cocteau.
Entretanto, os alemães rendem-se a 28 de Abril de 1945. No início do ano seguinte haverá um referendo para se saber se os italianos querem a república ou a monarquia. Visconti escreve no “L’Unitá”, órgão do Partido Comunista Italiano, um artigo: “Por que votarei no Partido Comunista?”. A república ganha e o Rei Humberto II exila-se em Portugal. Nas boas graças do PC, é apresentado por Antonello Trombadori, companheiro dos tempos da Resistência e amigo pessoal, a Palmiro Togliatti, secretário-geral do partido e ambos convidam-no a realizar um filme documental sobre a vida miserável e as condições terríveis de sobrevivência dos pescadores do Sul da Itália, que iria servir na campanha eleitoral que se avizinhava, em 1948. É assim que nasce “La Terra Trema”, que irá misturar o documentarismo com uma ficção, “I Malavoglia”, de Giovanni Verga, escritor que o cineasta muito estimava. “I Malavoglia” é o primeiro volume de um ciclo romanesco chamado “I Vinti” (Os Vencidos, na tradução literal), publicado em 1881.


Giovanni Verga (1840-1922), oriundo da Catânia (Sicilia), é o mais importante representante de uma corrente literária e artística conhecida por verismo, que surgiu acompanhando o Risorgimento e a unificação italiana, em finais do séc. XIX. Prolongando de certa forma o naturalismo francês de Zola, o verismo procura uma verdade e autenticidade para com a realidade circundante, sobretudo no que diz respeito às classes mais humildes e desprotegidas, às minorias étnicas, dando especial atenção à vida na província (inclusive aos dialectos regionais, como é o caso de “I Malavoglia”, transposto para “La Terra Trema”), na fábrica, no campo, no mercado, no mar.
Em 1941, antes de rodar “Ossessione”, Luchino Visconti já sonhava adaptar Verga, e chegou a escrever um artigo na revista “Cinema”, onde dizia: “É natural para quem acredite sinceramente no cinema, voltar os olhos com nostalgia para as grandes construções narrativas dos clássicos do romance europeu, e considerá-los hoje em dia talvez a fonte de inspiração mais verdadeira. Foi com essas ideias na cabeça que, passeando um dia pelas ruas da Catânia, e percorrendo as planícies de Caltagirone numa manhã de sirocco, que me apaixonei por Giovanni Verga”.
“La Terra Trema” passa-se, pois, na Sicilia, mais precisamente no pequeno posto pesqueiro de Aci Trezza, na década de 20. Com uma aparência documental, sem actores profissionais, recrutando os intérpretes entre os habitantes da aldeia, que improvisavam diálogos apenas indicados pelos argumentistas, o filme acompanha sobretudo a família dos Valastros. São pescadores, passam as noites arriscando a vida no mar, regressam com os barcos carregados de pesca, mas o que recebem é ínfimo, pois entre eles e a venda do seu produto ao público interpõem-se os intermediários, os grossistas que compram por atacado ao preço que impõem. Um dos Valastros, ’Ntoni, farto de ser explorado, resolve trabalhar por conta própria, compra o seu barco e tenta sobreviver sem os intermediários. Mas estes têm formas de coacção para todos os expedientes, e a pobreza e a ignorância da comunidade faz o resto.
O filme procura sobretudo ser retrato do dia-a-dia da comunidade, sublinhando as dificuldades e agruras. A câmara de Visconti denota uma sensibilidade extrema a captar as imagens, sentindo-se obviamente a influência de alguns soviéticos, como Eisenstein ou Pudovkine, na composição dos grupos humanos e na forma de enquadrar. O trabalho de realização foi minuciosamente preparado, com anotações e “story boards” que podem ainda ser consultados. Mas o mais importante é o sentido lírico e a verdade humana das imagens, a grandeza de um fôlego épico que perpassa pelas paisagens e pelos rostos.


A fotografia, a preto e branco, de Aldo Graziati, assistido por Gianni Di Venanzo, ajuda bastante ao excelente resultado final, onde se nota, sem surpresa, algum simplismo de análise, quase roçando a demagogia e o maniqueísmo que, todavia, se devem interpretar como fruto da época. Há, porém, quem afirme que este será um produto único na filmografia neo-realista. Lino Miccichè tem para si que este é o único filme do pós-guerra que não procura a conciliação, que não tem ilusões quanto à vitória, que não se consola com falsas certezas, que não oferece anjos libertadores, solidariedades fictícias, piedades mudas, refúgios sentimentais. Mas que, descrevendo uma luta, se fecha sobre essa luta, com amargura e “realismo”, na solidão de quem luta”.
Luchino Visconti e Antonio Pietrangeli adaptaram o romance de Giovanni Verga, e o cineasta contou com dois assistentes que, futuramente, se tornariam igualmente realizadores de importância significativa, Francesco Rosi e Franco Zeffirelli. A montagem de Mario Serandrei é igualmente excelente, e a música de Willy Ferrero e Luchino Visconti acompanha com rigor as imagens, criando algum dramatismo, na medida certa. Rodado entre Novembro de 1947 e Maio de 1948, em Aci Trezza, estreou-se no Festival de Veneza a 18 de Agosto, com muito bom acolhimento crítico (ganhou o “Leão de Ouro”) e a 2 de Setembro em toda a Itália, com pouca adesão de público.
Inicialmente, o projecto seria produzido pelo próprio PC italiano, que arranjou 3 milhões de liras para o efeito. Mas quando esta quantia acabou, e o filme não ia a metade, o partido não conseguiu nada mais, e Visconti contou com o apoio do produtor siciliano Salvo d'Angelo, da companhia Universalia e ainda algum capital do Banco da Sicília.
O filme, inicialmente, chamava-se “La Terra Trema: Episodio del Mare”, dado que se esperava continuá-lo com mais dois ou três episódios, testemunhando momentos da luta por melhores condições de vida em diferentes cenários. Depois do mar, seria um olhar sobre as minas de enxofre, outro sobre a terra, e possivelmente um quarto sobre a cidade, que seria filmado em Caltanissetta. Finalmente Visconti achou que este episódio era suficiente e a obra começou a ser conhecida unicamente por “La Terra Trema”.


A TERRA TREME
Título original: La Terra Trema: Episodio del Mare 
Realização: Luchino Visconti (Itália, 1948); Argumento: Antonio Pietrangeli, Luchino Visconti, segundo romance de Giovanni Verga; Produção: Salvo D'Angelo; Música: Willy Ferrero; Fotografia (P/B): G.R. Aldo; Operador de Imagem: Gianni Di Venanzo; Montagem: Mario Serandrei; Direcção de produção: Anna Davini, Renato Silvestri; Assistentes de realização: Francesco Rosi, Franco Zeffirelli, Demofilo Fidani; Som: Ovidio Del Grande, Mario Ronchetti, Vittorio Trentino; Companhia de produção: Universalia Film; Intérpretes: Antonio Arcidiacono, Giuseppe Arcidiacono, Venera Bonaccorso, Nicola Castorino, Rosa Catalano, Rosa Costanzo, Alfio Fichera, Carmela Fichera, Rosario Galvagno, Agnese Giammona, Nelluccia Giammona, Giovanni Greco, Ignazio Maccarone, Giovanni Maiorana, Antonino Micale, Maria Micale, Concettina Mirabella, Angelo Morabito, Pasquale Pellegrino, Amilcare Pettinelli, Antonio Pietrangeli, Alfio Valastro, Antonino Valastro, Francesco Valastro, Lorenzo Valastro, Raimondo Valastro, Salvatore Valastro, Santo Valastro, Sebastiano Valastro, Giuseppe Vicari, Salvatore Vicari, etc. (Não profissionais e não creditados no genérico); Narrador: Luchino Visconti; Duração: 160 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação etária: M/ 12 anos.

LUCHINO VISCONTI (1906 -1976)


LUCHINO VISCONTI (1906 -1976)

Don Luchino Visconti di Modrone, conde de Lonate Pozzolo, nasceu em Milão, a 2 de Novembro de 1906 e faleceu em Roma, de 17 de Março de 1976, e era descendente da aristocrática família milanesa dos Visconti. Filho de Giuseppe Visconti, duque de Grazzano, e de Carla Erba (proprietária e herdeira de uma célebre empresa farmacêutica), Luchino tinha mais seis irmãos. Prestou o serviço militar como sub-oficial de cavalaria em 1926, no Piemonte, e viveu os anos de sua juventude cuidando dos cavalos de sua propriedade. Além disso, era frequentador assíduo do belo canto e da estética do melodrama, ambas influências notórias na sua actividade futura.
O seu interesse pelo cinema data de 1936, quando em França a sua amiga Coco Chanel o apresentou a Jean Renoir que o onvidou a trabalhar no seu filme "Une Partie de Campagne". Em 1937 passou por Hollywood antes de retornar a Roma. Na capital italiana voltou a trabalhar com Renoir na direcção de “La Tosca”.
A partir de 1940 ligou-se aos intelectuais que faziam o jornal “Cinema” e vendeu jóias da família para realizar seu primeiro filme, "Ossessione", em 1943, com Clara Calamai e Massimo Girotti. No fim da II Guerra Mundial realizou o segundo filme, o documentário "Giorni di Gloria". Aristocrata por nascimento, mas comunista por convicção, foi contratado pelo Partido Comunista Italiano para realizar três filmes sobre pescadores, mineiros e camponeses da Sicília, acabou por fazer apenas um, "La Terra Trema".
Depois, em 1951, roda "Bellissima" com Anna Magnani, Walter Chiari e Alessandro Blasetti. O seu primeiro filme a cores foi em 1954, "Sentimento" (Senso) com Alida Valli e Farley Granger. O primeiro grande prémio da crítica chega em 1957, quando ele recebe o Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza pela fita "Le Notti Bianche", uma transposição delicada e poética de uma história de Dostoievski com Marcello Mastroianni, Maria Schell e Jean Marais.
O primeiro grande sucesso de crítica e de público ocorreria em 1960 com "Rocco e seus Irmãos", a saga de uma humilde família de calabreses que emigrava para Milão. Foi o filme que consagrou o actor francês Alain Delon ao lado de Annie Girardot e Renato Salvatori. No ano seguinte junta se a Vittorio De Sica, Federico Fellini e Mario Monicelli no filme em episódios "Boccaccio '70. O episódio de Visconti é protagonizado por Tomas Milian, Romy Schneider, Romolo Valli e Paolo Stoppa.
Em 1963 dirige o seu maior sucesso comercial e simultaneamente um dos filmes mais elogiados pela crítica, o magnifico "O Leopardo", extraído do romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, onde se destacavam Burt Lancaster, Claudia Cardinale e Alain Delon.
“Sandra” Vagas Estrelas da Ursa, um mergulho inquieto e melancólico na capacidade dos seres sensíveis para se destruírem amorosamente, com Claudia Cardinale e Jean Sorel, realizado em 1965 foi a obra seguinte. Em 1970 ele conhece o fracasso de uma obra sua, com “O Estrangeiro”, extraído do romance homónimo de Albert Camus e realiza também "Os Malditos" (La Caduta degli Dei) que lançou o actor Helmut Berger, a partir dai seu companheiro até à morte.
Com o sensível e refinado " Morte em Veneza" (1971), protagonizado por Dirk Bogarde e baseado na obra de Thomas Mann, volta a reencontrar-se com o êxito, ao abordar a  história de Gustav Aschenbach, um compositor que vai passar férias em Veneza, e acaba por viver uma grande e inesperada paixão, que iniciaria a sua destruição. O filme faz uma abordagem do conceito filosófico de beleza, assim como a passagem do tempo a importância da juventude nas nossas vidas. O filme seguinte foi a super produção  "Ludwig", com Helmut Berger e Romy Schneider. Durante a rodagem, sofre um ataque cardíaco que o prendeu a uma cadeira de rodas para sempre.
Mesmo em muita dificuldade, Luchino Visconti ainda faz dois filmes, “Violência a Paixão” (Gruppo di Famiglia in un Interno) e “O Inocente” (L'Innocente), derradeira obra, versão do romance de Gabriele d'Annunzio que regista brilhantes interpretações de Giancarlo Giannini e Laura Antonelli. Morre na primavera de 1976 na sua residência na cidade de Roma. Na Ilha de Ischia existe um museu que lhe é inteiramente dedicado.


Filmografia
1943: OSSESSIONE (Obsessão)
1948: LA TERRA TREMA (A TerraTreme)
1951: BELLISSIMA (Belissima)
1953: SIAMO DONNE (Nós, Mulheres) (episódio “ANNA MAGNANI”) 
1954: SENSO (Sentimento)
1957: LE NOTTI BIANCHE (Noites Brancas)
1960: ROCCO I SUOI FRATELLI (Rocco e os Seus Irmãos)
1961: BOCCACCIO '70 (Boccaccio ’70) (episódio “IL LAVORO”) 
1963: IL GATTOPARDO (O Leopardo)
1965: VAGHE STELLE DELL'ORSA... (Sandra)
1966: LE STREGHE (A Magia da Mulher) (episódio “LA STREGA BRUCIATA VIVA”)
1967: LO STRANIERO (O Estrangeiro)
1969: LA CADUTA DEGLI DEI (Os Malditos)
1971: MORTE A VENEZIA (Morte em Veneza)
1973: LUDWIG (Luis da Baviera)
1974: GRUPPO DI FAMIGLIA IN UN INTERNO (Violência e Paixão)
1976: L'INNOCENTE (O Inocente)

Documentários
1945: GIORNI DI GLORIA
1951: DOCUMENTO MENSILE N. 2, episódio “APPUNTI SU UN FATTO DI CRONACA”
1970: ALLA RICERCA DI TADZIO

Teatrografìa
Como encenador
Parenti terribili,de Jean Cocteau (1945)
Quinta colonna, de Ernest Hemingway (1945)
La macchina da scrivere, de Jean Cocteau (1945)
Antigone de, Jean Anouilh (1945)
A porte chiuse, de Jean-Paul Sartre (1945)
Adamo, de Marcel Achard (1945)
La via del tabacco, de John Kirkland (sobre romance de Erskine Caldwell) (1945)
Il matrimonio de Figaro, de Pierre Augustin Caron De Beaumarchais (1946)
Delitto e castigo, de Gaston Bary (sobre romance de Dostoevskij) (1946)
Zoo de vetro, de Tennessee Williams (1946)
Euridece, de Jean Anouilh (1947)
Rosalinda o Come vi piace, de William Shakespeare (1948)
Un tram che si chiama desiderio, de Tennessee Williams (1949)
Oreste, de Vittorio Alfieri (1949)
Troilo e Clessidra, de William Shakespeare (1949)
Morte de un commesso viaggiatore, de Arthur Miller (1951)
Un tram che si chiama desiderio, de Tennessee Williams (1951)
Il seduttore, de Diego Fabbri (1951)
La locandeera, de Carlo Goldoni (1952)
Tre sorelle, de Anton Tchechov (1952)
Il tabacco fa male, de Anton Tchechov (1953)
Medea, de Euripide (1953)
Come le foglie, de Giuseppe Giacosa (1954)
Il Crogiuolo, de Arthur Miller (1955)
Zio Vania, de Anton Tchechov (1955)
Contessina Giulia, de August Strindberg (1957)
L'impresario de Smirne, de Carlo Goldoni (1957)
Uno sguardo dal ponte, de Arthur Miller (1958)
Immagini e tempi, de Eleonora Duse (1958)
Veglia la mia casa, angelo de Ketti Frings (sobre romance de Thomas Wolfe) (1958)
Deux sur la balançoire, de William Gibson (1958)
I ragazzi della signora Gibbons, de Will Glickman e Joseph Stein (1958)
Figli d'arte, de Diego Fabbri (1959)
L'Arialda, de Giovanni Testori (1960)
Dommage qu'elle soit une p..., de John Ford (1961)
Il tredecesimo albero, de André Gide (1963)
Après la chute de, Arthur Miller (1965)
Il giardeno dei ciliegi, de Anton Tchechov (1965)
Egmont, de Wolfgang Goethe (1967)
La monaca de Monza, de Giovanni Testori (1967)
L'inserzione, de Natalia Ginzburg (1969)
Tanto tempo fa, de Harold Pinter (1973)

Encenação de óperas:
La vestale de Gaspare Spontini (1954)
La sonnambula de Vincenzo Bellini (1955
La Traviata de Giuseppe Verdi (1955)
Anna Bolena de Gaetano Donizetti (1957)
Ifigenia in Tauride de Christoph Willibald Gluck(1957)
Don Carlos de Giuseppe Verdi (1958)
Macbeth de Giuseppe Verdi (1958)
Il Duca d'Alba de Gaetano Donizetti (1959)
Salomé de Richard Strauss (1961)
Il diavolo in giardino de Franco Mannino (sobre um libretto de Visconti, Filippo Sanjust e Enrico Medeoli, 1963)
La Traviata de Giuseppe Verdi (1963)
Le nozze de Figaro de Wolfgang Amadeus Mozart (1964)
Il Trovatore de Giuseppe Verdi (1964)
Il Trovatore de Giuseppe Verdi (1964) (nova versão)
Don Carlos de Giuseppe Verdi (1965)
Falstaff de Giuseppe Verdi (1966)
Der Rosenkavalier de Richard Strauss (1966)
La Traviata de Giuseppe Verdi (1967)
Simon Boccanegra de Giuseppe Verdi (1969)
Manon Lescaut de Giacomo Puccini (1973)

Principais prémios:
Nomeação para o Oscar de Melhor Argumento Original, por "La Caduta degli dei" (1969).
Nomeação para o BAFTA de Melhor Realizador, por "Morte a Venezia" (1971).
Dois Prémios Bodil de Melhor Filme Europeu, por "Rocco e i suoi fratelli" (1960) e " Morte a Venezia " (1971).
Palma de Ouro no Festival de Cannes, por "Il Gattopardo" (1963).
Prémio do 25º Aniversário no Festival de Cannes, por "Morte a Venezia" (1971).
Leão de Ouro no Festival de Veneza, por "Vaghe stelle dell'Orsa...” (1965).
Leão de Prata no Festival de Veneza, por "Le Notti bianche" (1957).
Prémio Especial no Festival de Veneza, por "Rocco e i suoi fratelli" (1960).

Prémio FIPRESCI no Festival de Veneza, por "Rocco e i suoi fratelli" (1960). 

SESSÃO 6: O MILAGRE DE MILÃO



O MILAGRE DE MILÃO (1951)

"Miracolo a Milano" resulta de uma nova colaboração entre de Sica e Zavattini, desta feita adaptando um romance deste último ("Totò il buono"). Trata-se de uma curiosa variante do neo-realismo, pois apesar de tudo se passar na mais pura e desabrigada realidade social italiana do após guerra, o tom não é realista, mas parabólico. Na verdade, como o próprio título indica, estamos hipoteticamente no campo do milagre, com o aparecimento na Terra de um bebé, Totò, que é adoptado pela velha Lolotta, quando descoberto no meio das couves da sua pequena quinta. Tratado como um filho, Totò revela-se um ser diferente de todos os outros. Mais tarde, por morte de Lolotta, a criança é entregue a um orfanato, donde sai adulto (no plano imediatamente seguinte, uma excelente elipse temporal). Apesar de viver na maior miséria, passar as maiores privações, coexistir com os maiores dramas, nunca apaga do rosto um sorriso, nunca desespera, procura sempre ultrapassar as dificuldades e encontrar uma solução. Não só para si, como para todos os que o rodeiam. E quem o rodeia são pobres miseráveis, sem nada a que se agarrarem, mas por vezes egoístas e mesquinhos. Totò a todos se mostra prestável, a todos ajuda, a todos incute uma esperança desmedida no amanhã. Totò gosta de viver e gosta de saber os seus semelhantes o mais felizes possível.
Para isso transforma radicalmente o bairro da lata onde vive, “urbaniza-o”, cria ruas e sistematiza as tarefas, dá nomes educativos às ruas e praças, ajuda cada pessoa como pode, e certamente que o seu sorriso permanente é uma das mais preciosas benesses. É contagiante e propaga-se pelo bairro, desencadeando reacções em cadeia. Até ao dia em que o baldio abandonado onde se encontra o bairro da lata se transforma numa apetecível jazida de petróleo, que desperta a cobiça dos capitalistas habituais que aparecem em bando, rodeados de polícias, para reivindicarem o terreno e expulsarem os miseráveis que ali habitam. Mas aí a parábola torna-se mais contundente. A velha Lolotta, que entretanto tinha já, literalmente, viajado para os anjinhos, regressa com uma miraculosa pomba branca que faz realmente milagres. Nem sempre muito bem compreendidos pelos caprichosos mendigos que solicitam os mais descabidos prodígios. Se De Sica e Zavattini atingem com a sua crítica os poderosos que não recuam perante nada para multiplicarem o seu lucro, não é menos verdade que não hesitam em reprovar a falta de realismo desses pobres que gostam de ostentação e de luxo, e cuja principal ambição parece ser tornarem-se iguais aos capitalistas que combatem.


Impressionante é a lucidez da estrutura narrativa e o tom de quase comédia musical que por vezes se instala no filme e nos contagia a nós, espectadores. Esta é uma daquelas obras que procuram difundir a bondade e a fraternidade social, e consegue-o de uma forma que diríamos ingénua e pura, mas que atinge plenamente a ambição inicial. Sai-se do filme revigorado, tonificado pela presença desse espantoso Francesco Golisano que interpreta a personagem de Totò, uma daquelas figuras que nunca mais se esquecem e que os puros de espírito não deixarão seguramente de perseguir ao longo da vida. A lição de solidariedade, ao contrário do que possa parecer a uma primeira vista, ganha consistência e vigor por se expressar em forma de parábola, onde o “milagre” afinal é algo de profundamente humano e possível de alcançar: basta reunir esforços, acreditar na razão que nos assiste e lutar por ela. Podem dizer que não é voando sobre os céus de Milão, montado em paus de vassoura, que os problemas sociais se resolvem, mas é seguramente com o espírito amável, mas firme, de Totò, com a sua perseverança e alegria, com a sua generosidade aberta ao próximo, que muitos conflitos se podem dissolver na força da comunidade.
De Sica não foge à realidade dilacerante de uma cidade destruída pela guerra e por dificuldades económicas insustentáveis. A realidade que “Milagre em Milão” apresenta é desesperante e é o retrato vivido por Itália depois de terminada a onda megalómana e destrutiva do fascismo mussoliniano. Para derrotar esse monstro que assassinou vidas e esventrou cidades temos a inocência do olhar, a delicadeza do gesto, a ingenuidade da palavra de Totò que parece desconhecer o mal, a ganância, a vaidade, a violência de quem a ele se opõe. Totò vislumbra, para lá da triste e cinzenta realidade que o cerca, uma sociedade nova, fraterna, solidária, humana nos seus melhores momentos. É verdade que os pobres com quem Totò se cruzam são, na sua generalidade, maus, invejosos, ignorantes, egoístas, traidores. Mas o protagonista, uma personagem ideal, produto de um óbvio “milagre”, opõe-se a esta situação e procura projectar um novo horizonte. Será na fraternidade, na generosidade, na cumplicidade que se poderá construir o futuro. Eis como o “milagre” se pode ligar a algum pensamento marxista-leninista, já que muita da base do neo-realismo se encontra associado a uma teoria comunista da arte. Zavattini era comunista e De Sica, embora nunca o tenha sido, ao que se sabe, terá funcionado como “compagnon de route”.


O tom de comédia que critica habilmente usos e costumes, que vão da avidez dos milionários ao racismo dos pobres, da mesquinhez de Rappi, que trai companheiros por um casaco com gola de pele e um chapéu alto (um dos brilhantes trabalhos do Paolo Stoppa, um actor já nessa altura com uma prodigiosa carreira dispersa pelo teatro e pelo cinema, um dos raros profissionais a integrar o elenco do filme) à inveja de uns quantos e à ostentação de outros, esse tom de comédia é muito bem desenvolvido por De Sica, com recurso sobretudo a uma lirismo austero e a uma interpretação refreada e contida. Este tipo de parábola poderia desencadear uma vaga de mau gosto insuportável, mas tanto De Sica como os seus cúmplices conseguem o “milagre” de manter o filme num ritmo e numa toada que não só suporta bem as peripécias narradas, como as sustenta num nível deliciosamente bem-humorado, sem nunca perder a perspicácia crítica.
O realismo descarnado de “Ladrões de Bicicletas” cede aqui perante o maravilhoso e o poético, conseguindo, no entanto, ambas as obras participarem de um mesmo olhar, de uma mesma sensibilidade, de uma mesma inocência e pureza.


O MILAGRE DE MILÃO
Título original: Miracolo a Milano
Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1951); Argumento: Vittorio De Sica, Suso Cecchi D'Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci, Cesare Zavattini, segundo romance deste último ("Totò il buono"); Produção: Vittorio De Sica; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): G.R. Aldo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Guido Fiorini; Direcção artística: Guido Fiorini; Guarda-roupa: Mario Chiari; Direcção de produção: Carmine Bologna, Nino Misiano, Umberto Scarpelli; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Umberto Scarpelli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Bruno Brunacci; Efeitos especiais: Enzo Barboni, Ned Mann, Václav Vích; Companhias de produção: Ente Nazionale Industrie Cinematografiche (ENIC), Produzioni De Sica; Intérpretes: Emma Gramatica (a velha Lolotta), Francesco Golisano (Totò), Paolo Stoppa (Rappi), Guglielmo Barnabò (Mobbi), Brunella Bovo (Edvige), Anna Carena (Marta), Alba Arnova, Flora Cambi, Virgilio Riento, Arturo Bragaglia, Erminio Spalla, Riccardo Bertazzolo, Checco Rissone, Angelo Prioli, Giuseppe Berardi, Gianni Branduani, Enzo Furlai, Jerome Johnson, Renato Navarrini, Egisto Olivieri, Luigi Ponzoni, Piero Salonne, Jubal Schembri, Walter Scherer, Giuseppe Spalla, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Estreia em Portugal: 15 de Janeiro de 1952. 

SESSÃO 5: HUMBERTO D


HUMBERTO D (1952)

O neo-realismo italiano iniciou-se com um belíssimo conjunto de obras, donde se destacam “Roma Citta Aperta”, de Rossellini (1945), “Riso Amaro”, de De Santis (1946), “Paisà”, de Rossellini (1946) e “Ladri di Biciclette”, de De Sica (1948), entre outras. O próprio De Sica, para lá do citado “Ladrões de Bicicletas”, já inscrevera outras obras suas nesta corrente, como “Scuisciá” ou “Milagre de Milão”, abordando temas como o desemprego, a juventude, a marginalidade, o papel da mulher, a ocupação e o pós-guerra, até chegar a “Umberto D” (1952), que alguns consideram a obra maior deste autor, preferindo-a mesmo a “Ladri di Biciclette”. Creio que nesta película a dupla De Sica-Zavattini condensa muito das suas preocupações, tendo desta feita como figura central Umberto D., um velho reformado, que traz consigo todos os problemas da velhice, numa sociedade traumatizada pela guerra e por tudo o que ela carrega. O filme é dedicado ao pai de Vittorio De Sica, de nome Umberto De Sica, e o título da obra não deixa de associar o protagonista do filme ao pai do realizador, o que este mesmo confirmou em entrevistas, afirmando que muitas das questões apresentadas pelo seu filme foram inspiradas em situações vividas no seu agregado familiar, quando ele ainda era jovem e assistia às dificuldades enfrentadas pela família.
Umberto D., o protagonista, é um reformado que procura manter todas as aparências de dignidade possível, numa época extremamente difícil da história de Itália, acabada de sair da II Guerra Mundial. Sem família próxima, vive em Roma, num modesto quarto alugado, num andar propriedade de uma locatária sem grandes escrúpulos e sem nenhuns problemas de consciência. Umberto D. tem como únicos companheiros um cão que ele acarinha o melhor que pode e uma jovem, criada da senhoria, que faz do velho seu confidente. No fundo, são três cúmplices que fazem da infelicidade uma ligação emocional e uma âncora que os agarra à vida e a alguma possível esperança. Mas os tempos estão maus, e o velho empregado de escritório, de cujo trabalho ainda guarda alguma roupa e a compostura necessária, vai tropeçando nos escolhos que uma sociedade ingrata para com a velhice lhe vai colocando, um após outro, no caminho.
Há em “Umberto D.” os mesmos princípios que nortearam todo o neo-realismo inicial, uma narrativa de rua, despojada de efeitos dramáticos, povoada por actores não profissionais (o extraordinário Carlo Battisti, que interpreta Umberto D, era um professor universitário reformado, que nunca representara em cinema), onde os problemas sociais sobressaem, mas há igualmente um salto em frente, numa nova perspectiva humana. O enquadramento psicológico do personagem central, a sua solidão tremenda, só disfarçada pela companhia de “Flick”, o seu fiel cão, e as conversas com a criada Maria, levam-nos já para um novo patamar de realismo, que se irá desenvolver, sobretudo com Rossellini e Antonioni, na década de 60.


Umberto Domenico Ferrari é uma personagem complexa, diversificada, não tem a aparência do bom velho com quem todos simpatizam à primeira, nem nada faz para sê-lo. Ele é um homem idoso, que já deixou o emprego há uns tempos, mas que procura esconder a humilhação de ser cada vez mais pobre, de a sociedade o afastar da vida com arrogância. Chega a tentar estender a mão à caridade, mas arrepende-se de imediato. Coloca Flick de chapéu na boca à espreita que nele caia uma moeda, mas também aí desiste. Recorre à sopa dos pobres, onde tenta dar de comer também ao seu cão, colocando o prato escondido debaixo das pernas, para não ser surpreendido pela instituição que não quer caninos na sala. Sente-se o desgosto de Umberto quando vê o seu modesto quarto esventrado pela senhoria que o quer ver pela porta fora, pois há dois meses que se atrasa na renda. Umberto descobre-se descartável, mais do que isso: sente que é um peso de que muitos se querem ver livres. Nem mesmo numa manifestação de reformados que protestam o seu desagrado se sente incorporado. Ele está a mais, é um ser fora de tempo, de um tempo que é de outros, de jovens com futuro, de empreendedores sem escrúpulos, de um “milagre económico” que lhe dizem que está a ser atrasado por culpa sua. A hora é de arrendar quartos, à hora, a casais adúlteros, fazer dinheiro de qualquer forma. Umberto Domenico Ferrari é o empecilho que tem de esperar à porta de casa que outros se sirvam da sua cama. Umberto e Flick irmanam-se nessa “vida de cão”. Por isso se compreende ainda melhor a cumplicidade que entre ambos se estabelece. Será, porém, Flick a salvar Umberto. Até quando?
Neste aspecto, “Umberto D.” data de 1952, mas é um filme intemporal. Podia ter sido rodado hoje, em Portugal, nos EUA, na Rússia, na China ou nos países nórdicos (basta ler a literatura actual de qualquer desses países, para se verificar que sobre este tema muito se já disse, mas muito se precisa ainda de fazer). Nalguns casos, existe mesmo um retrocesso, quer nas medidas de apoio, quer no sentimento generalizado das pessoas. No caso de Portugal, onde curiosamente se proíbe a eutanásia, a verdade é que são alguns governantes a propor a “extinção” dos velhos, improdutivos, e que só causam embaraços à segurança social. As pessoas que morrem sozinhas, em velhas casas e quartos sombrios, e são descobertas dias, meses, anos depois, são sintomáticas desse abandono. O filme de De Sica é um testemunho dramático, trágico, dessa existência sofrida e inglória, que cada vez mais faz pensar no suicídio. No pós-guerra em Itália, como hoje em dia em Portugal, onde esse acto de desespero é visto por muitos, infelizmente cada vez mais, como um gesto libertador de um dia a dia opressivo e aberrante.
Admiravelmente conduzido, com um rigor de olhar, uma sensibilidade, uma ternura sem nada de meloso, “Umberto D.” sobrevive sem uma ruga, colocando o nome do seu autor entre os maiores da sétima arte. Tão intensa como “Ladrões de Bicicletas”, a obra tem em Carlo Battisti (Umberto Domenico Ferrari) e Maria Pia Casilio (Maria, a empregada) dois actores admiráveis, fotografados com uma exigência moral invulgar pela câmara de G.R. Aldo. Uma obra-prima absoluta.



HUMBERTO D
Título original: Umberto D.

Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1952); Argumento: Cesare Zavattini; Produção: Giuseppe Amato, Vittorio De Sica, Angelo Rizzoli; Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): G.R. Aldo; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Virgilio Marchi; Decoração: Ferdinando Ruffo; Direcção de produção: Nino Misiano, Roberto Moretti; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Franco Montemurro; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Ennio Sensi; Companhias de produção: Rizzoli Film, Produzione Films Vittorio De Sica, Amato Film; Intérpretes: Carlo Battisti (Umberto Domenico Ferrari), Maria Pia Casilio (Maria, a empregada), Lina Gennari (Antonia Belloni), Ileana Simova, Elena Rea, Memmo Carotenuto, Alberto Albani Barbieri, Pasquale Campagnola, Riccardo Ferri, Lamberto Maggiorani, De Silva, etc. Duração: 89 minutos; Distribuição em Portugal: Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 18 de Março de 1953.