A ESTRADA (1954)
Esta
estrada de Fellini é uma via-sacra, testemunhando uma vida de sacrifício e de
dor, por onde vai brotando, aqui e ali, um sorriso doce e emoções simples e
puras. Dir-se-ia um filme de desespero, um dos mais radicais na obra de
Fellini, mas onde todavia se insinua sempre uma réstea de esperança final,
redentora.
Esta
viagem que acompanhamos ao longo de anos (sim “A Estrada” é um “road movie”!) é
a de Zampanò (Anthony Quinn), um homem rude e violento, egoísta e brutal. Anda
de terra em terra a apresentar o seu “número” de circo, o do extraordinário
homem que consegue apenas com os músculos do peito, rebentar os aros da
corrente metálica que o envolve. Anda com uma “assistente”: anteriormente fora
Rosa, mas morrera e ele começa, no início do filme, por dar a notícia à mãe e
aos irmãos, a quem oferece 10.000 liras, e “requisita” uma outra filha, mais
nova que Rosa, Gelsomina, uma rapariga ligeiramente atrasada, que fica
entusiasmada com a ideia de viajar, de sempre “ser menos uma boca para
alimentar”, como a mãe afirma, de cantar e dançar, de andar de feira em feira.
Partem numa carroça escalavrada, puxada por uma moto que a tudo parece resistir.
Andam pela paupérrima Itália do pós-guerra, feiras miseráveis, bairros
degradados, praças desoladas e desconsolados circos. Zampanò não tem dúvidas
quanto à forma como “amestrar” Gelsomina, ele que nunca falha “nem com cães”.
Assim se faz, não sem um arrufo de rebeldia da parte de Gelsomina. Mas, como
sempre em Fellini, um poeta e um sonhador, estas são personagens que perseguem
sonhos e quimeras, quer sejam ternas atordoadas ou brutais contorcionistas de
aço, ou mesmo loucos, como “Il Matto”, outra figura admirável, um equilibrista
que sabe que vai morrer, mas não hesita em provocar o destino, quer seja num
fio sobre uma praça, quer seja perante a ferocidade de Zampanò. No fundo, esta
Humanidade frágil, por muita força que revele nos músculos, procura o amor e a
cumplicidade de um gesto, de um olhar.
Como
sempre em Fellini é da errância que se trata, sejam os “vitelloni” na sua
cidade natal, sejam os artistas de circo de “Luci del Varietá”, sejam os
personagens de “A Dolce Vita” ou de “8 ½”. A vida é uma errância a que cada um
procura dar um sentido, buscar uma estrela que o oriente. Por isso no final de
“A Estrada” se olha o céu, interrogando o infinito, em desespero perante o
desconhecido, ou tocado pela graça de uma qualquer mensagem deixada por Gelsomina.
Mas uma certeza existe: algo na sua consciência despertou.
A
viagem de ambos ao longo das estradas de Itália é simultaneamente uma
iniciação, com as suas vítimas e algozes, ambos irmanados num mesmo percurso.
Fellini não perdoa aos últimos, entroniza as primeiras, mas a todos concede a
dúvida de uma esperança. Se Gelsomina é escravizada por Zampanò, não deixa de
nutrir por ele alguma afeição, amor, quem sabe?, amizade de quem procura
entender as razões de tanta falta de razão. Zampanò, ao abandonar a companheira
adormecida numa paisagem gelada, deixa-lhe ao lado o trompete a que ela se
habituara.
Com uma
ironia por vezes dolorosa, como por exemplo na composição dessa genial
Giulietta Masina, a meio caminho da herança de Chaplin e de Harpo Marx, ou na
histriónica figura do “Matto”, admiravelmente composta por Richard Basehart,
Fellini ergue um conjunto de personagens que não mais se esquecem, depois de
com elas nos cruzarmos. O próprio Zampanò, fulgurantemente criado por Anthony
Quinn, nos chega a enternecer na sua falta de jeito para a vida, na sua
solidão, no deserto das suas emoções, na sua barbárie primitiva. No fundo, “A
Estrada” é o retrato de solidões que se cruzam e dificilmente se tocam. Mas,
aqui e ali, o milagre parece acontecer. Numa Itália retalhada pelo fascismo e
pela guerra, submergida numa miséria que conduz ao egoísmo e à brutalidade,
sobrevivendo entre a triste realidade circundante e os sonhos, ingénuos, loucos
ou impetuosos de uma fantasia tão cara ao cineasta.
Mais
uma vez, o mundo do espectáculo é o cenário privilegiado para a démarche de
Fellini, fascinado pelo teatro e o circo, pela vida difícil dos que andam na
estrada a oferecerem-se como espectáculo. Aqui são saltimbancos despidos de
tudo. Sós na paisagem agreste. Sós perante a noite. Sós perante o oceano, uma
das imagens recorrentes na sua obra. Sós perante o mistério da vida.
“A
Estrada” é uma obra-prima a que a Academia de Hollywood concedeu o Oscar de
Melhor Filme em Língua não Inglesa e é, igualmente, um filme de uma complexidade
e riqueza de leituras incomensuráveis. Vendo-o ou revendo-o, vezes sem fim,
encontra-se sempre algo de novo, e reencontra-se invariavelmente uma emoção
autêntica, um generoso olhar sobre a humanidade, uma respiração de génio cujo
fulgor não empalidece. Definindo já uma equipa que o acompanhou ao longo dos
anos, Tullio Pinelli e Ennio Flaiano na escrita do argumento, e sobretudo Nino
Rota, na criação de uma partitura musical sublime que eternizaria igualmente
esta obra. Com “La Strada”, Federico Fellini ascendia ao panteão dos maiores do
cinema mundial. Aí ficaria para sempre.
A ESTRADA
Título original: La Strada
Realização: Federico Fellini (Itália,
1954); Argumento: Federico Fellini, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano; Produção:
Dino De Laurentiis, Carlo Ponti; Música: Nino Rota; Fotografia (p/b): Otello
Martelli e ainda Carlo Carlini; Montagem: Leo Cattozzo; Design de produção:
Mario Ravasco; Direcção artística: Enrico Cervelli, Brunello Rondi;
Guarda-roupa: Margherita Marinari; Maquilhagem: Eligio Trani, Dante Trani;
Direcção de produção: Angelo Cittadini, Danilo Fallani, Luigi Giacosi, Giorgio
Morra; Som: R. Boggio, Aldo Calpini; Departamento de arte: Tom Jung; Companhias
de produção: Ponti-De Laurentiis Cinematografica; Intérpretes: Anthony Quinn (Zampanò), Giulietta Masina (Gelsomina),
Richard Basehart (Il Matto, o louco), Aldo Silvani (Signor Giraffa), Marcella
Rovere (La Vedova, a viúva), Livia Venturini (La Suorina, a irmã), Gustavo
Giorgi, Yami Kamadeva, Mario Passante, Anna Primula, Goffredo Unger, Nazzareno
Zamperla, etc. Duração: 108 minutos;
Classificação etária: M /12 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo;
Data de estreia em Portugal: 22 de Setembro de 1955
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