BELÍSSIMA (1952)
“Bellissima” parte de uma ideia de
Cesare Zavattini, mas, segundo se sabe, muito alterada pelo realizador e os
seus colaboradores argumentistas, Suso Cecchi d'Amico e Francesco Rosi. Mas há
também quem afirme, muito embora mantendo o facto da ideia inicial ter sido
escrita por Zavattini, que Visconti ficou interessado neste filme quando um dia
marcou um teste para crianças na Cinecittà e apareceram centenas de mães com as
filhas, acorrendo à chamada, tal como as vemos no início da obra. O mais certo
é que ambas as hipóteses estejam certas e uma à outra se completem.
Interessante será, todavia, perceber o
que era a ideia original de Zavattini e as principais modificações
introduzidas. Vejamos, portanto, o que é o filme: Maddalena Cecconi (Anna
Magnani) é uma mulher popular, uma romana típica, intrépida e imparável no
discurso, que tem uma filha, Maria, e sabe que o realizador Alessandro Blasetti
procura uma criança de 6 ou 7 anos para protagonizar o seu próximo filme.
Contra o parecer do pai leva-a á primeira audição, onde tem de disputar o lugar
ao lado de centenas de outras candidatas. Aldraba na idade, mas depois tudo faz
para que Maria vá ate final, arranja-lhe o melhor vestidinho possível, leva-a
ao cabeleireiro, oferece-lhe aulas de música, deixa-se convencer por uma velha
actriz que quer dar aulas de representação à miúda, e vai distribuindo
injecções pelo bairro todo para pagar os gastos. Atira-se mesmo às economias
que se destinavam à nova casa. Ela quer que a sua filha, triunfe, seja uma
vedeta, entre no cinema que tanto a fascina. Nem que tenha de pagar uma bela
quantia para meterem cunhas a este e àquela, dinheiro que acaba por ficar nas
mãos fraudulentas de Alberto Annovazzi (Walter Chiari), que com ele compra uma
lambreta. Alberto gostaria de levar o seu encanto um pouco mais longe, mas a
decência de Maddalena impede-o.
O cinema, aliás, é fonte de devaneio
para todas aquelas mães que sonham com igual destino para as suas filhas. É o
fascínio do cinema a impor-se sobre a realidade do dia-a-dia. Maddalena vive
num bairro pobre, arranja discussões constantes com o marido que a vai
aturando, não é bem vista pela sogra, e tem as vizinhas à perna cada vez que os
gritos em sua casa chegam às escadas. Por esta altura, nos anos 50, a crítica
marxista falava muito da alienação, e gostava de chamar ao cinema uma “fábrica
de sonhos”, em oposição ao cinema que propunham, um olhar directo sobre a
realidade e os seus problemas, se possível com uma orientação bem expressa no
sentido dos seus propósitos.
“Belissima” é, pois, a análise de uma
alienação, a alienação pelo espectáculo, pelo cinema. Mais tarde, em “Rocco e
os seus Irmãos” será o boxe, hoje em dia pode e deve continuar-se a falar de
alienação quanto aos “reality shows”, ao mundo do espectáculo, sobretudo na
música, às telenovelas, onde se revelam centenas de “novas promessas”, muitas
das quais fica pelo primeiro ensaio, ao universo do desporto, sobretudo o
futebol. Andy Warhol chamou-lhe a necessidade de “quinze minutos de fama”.
Agora os “quinze minutos de fama” andam muito associados a alguns milhões que
se possam arrecadar sem grande esforço.
Mas no final tudo se precipita. Maria
vai até ao derradeiro teste, mas Maddalena não consegue ficar cá fora à espera
dos resultados. Vai furando até conseguir ver a projecção do teste, na sala das
máquinas e aí descobre que o teste é motivo de galhofa geral, quando Maria
chora. É aí que ela percebe a indignidade do que está a fazer e recua. A sua
Maria não será actriz, mesmo que no final acabe por ser ela a eleita por
Blasetti, mesmo que lhe ofereçam milhares de liras pela assinatura do contrato.
Ora bem no argumento de Zavattini, esta
protagonista era uma mulher da classe média, da média burguesia, o que
certamente permitiria uma crítica forte a esta classe social. Visconti
colocou-a no meio do povo, o que pode estender a crítica a esta alienação a
todas as classes sociais, e tem ainda a vantagem de permitir a esta mulher a
adopção de uma nobre atitude, uma consciencialização do erro, mesmo com
necessidades económicas flagrantes.
Outra alteração significativa tem a ver
com o desfecho: para Zavattini Maria era recusada. Para Visconti, Blasetti e o
mundo do cinema aceita-a, é a mãe de Maria quem recusa a entrega da criança ao
sacrifício. O que tem duas leituras curiosas. Por um lado, ressalva-se o
cinema, não se atira sobre ele o opróbrio da fábrica de alienações. Apesar de
haver muitos aldrabões no meio, o cinema sobrevive. A questão central do filme
transita para a mãe: ela é que se deixou alienar pelo sonho do cinema, ela é
que tem de formar a filha e controlar-se a ela própria. O cinema, como qualquer
actividade humana, encerra uma multiplicidade de perigos. Somos nós que nos
temos de defender e mantermo-nos alerta.
Há, aliás, no filme uma sequência
particularmente interessante neste sentido. Quando procura entrar na cabine de
projecção, Maddalena conversa com uma montadora dos estúdios, Liliana Mancini.
Tal como muitos outros personagens no filme também Liliana se interpreta a si
própria e conta a sua história verídica. Agora é montadora, mas outrora foi
actriz. Um dia o realizador Renato Castellani parou, olhou para ela e
convidou-a a protagonizar o seu próximo filme, “Sous le Soleil de Rome” (Sob o
Céu de Roma, 1948). "Escolheram-me porque eu tinha o tipo necessário para
o filme. Isso subiu-me à cabeça, deixei o emprego e o namorado, mas depois
percebi que não era actriz”. O que pode levar mais longe a questão: nem todos
nasceram para ser vedetas, mas há muitas formas de se sonhar com o cinema e de
o servir.
Já depois de recusar a ida da filha para
o cinema, abraçada ao marido, Maddalena sobressalta-se. Muito perto de si,
passa um filme. Ela sorri e diz: “É Burt Lancaster! Muito sedutor…” Acrescenta
que está a brincar. Não está. Ela vai continuar a gostar de cinema e de Burt
Lancaster. Visconti também. Tanto assim que o irá contratar para duas
obras-primas suas, “O Leopardo” e “Violência e Paixão”.
“Belíssima” é uma obra belíssima, que se
intromete pelos caminhos do cinema, criticando alguns dos seus processos, mas
sobretudo alertando o espectador para esses perigos. Toda a estrutura narrativa
é muito bem desenvolvida, a fotografia, a música, a montagem, excelentes, mas o
brilho assenta todo no corpo de uma actriz sublime: Anna Magnani. Ela é a alma
desta obra vulcânica, irrompe como um furacão de início a fim, e leva a imagem
da romana a ficar-lhe para sempre indissociavelmente ligada. O seu trabalho é
fulgurante. Inesquecível. Um grande filme com uma actriz como há poucas.
BELÍSSIMA
Título
original: Bellissima
Realização: Luchino Visconti
(Itália, 1952); Argumento: Suso Cecchi D'Amico, Francesco Rosi e Luchino
Visconti, segundo história de Cesare Zavattini; Produção: Salvo D'Angelo;
Música: Franco Mannino, segundo Gaetano Donizetti ("L'Elisir
d'Amore"); com Orchestra Sinfonica del Teatro dell'Opera, conduzida por
Franco Ferrara; Fotografia (P/B): Piero Portalupi, Paul Ronald; Montagem: Mario
Serandrei; Design de produção: Gianni Polidori; Guarda-roupa: Piero Tosi;
Maquilhagem: Alberto De Rossi; Direcção de produção: Vittorio Glori, Paolo
Moffa, Orlando Orsini; Assistentes de realização: Francesco Rosi, Franco
Zeffirelli; Departamento de arte: Italo Tomassi; Som: Ovidio Del Grande;
Companhia de produção: CEI Incom; Intérpretes:
Anna Magnani (Maddalena Cecconi), Walter Chiari (Alberto Annovazzi), Tina
Apicella (Maria Cecconi), Gastone Renzelli (Spartaco Cecconi), Tecla Scarano
(Tilde Spernanzoni), Lola Braccini (mulher do fotógrafo), Arturo Bragaglia
(fotógrafo), Nora Ricci, Vittorina Benvenuti, Linda Sini, Teresa Battaggi, Gisella
Monaldi, Amalia Pellegrini, Luciana Ricci, Giuseppina Arena, Liliana Mancini,
Alessandro Blasetti, Vittorio Glori, Mario Chiari, Luigi Filippo D'Amico,
George Tapparelli, Luciano Caruso, Michele Di Giulio, Mario Donatone, Pietro
Fumelli, Lilly Marchi, Anna Nighel, Lina Rossoni, Franco Ferrara, Corrado
Mantoni, Sonia Marinelli, Guido Martufi, Vittorio Musy Glori, Scuola di Ballo
del Teatro dell'Opera, Orchestra Sinfonica della Radiotelevisione Italiana,
Coro della Radiotelevisione Italiana, etc. Duração:
115 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo; Classificação
etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 24 de Maio de 1955.
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