quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

SESSÃO 4: LADRÕES DE BICICLETAS


LADRÕES DE BICICLETAS (1948)

Um conceituado crítico de cinema norte-americano, Godfrey Cheshire, considera que “Citizen Kane” (1941) e “Ladri di Biciclette” (1948) são as duas mais importantes fontes de inspiração para o cinema moderno, e duas obras que abriram o cinema a uma idade adulta. André Bazin, um dos mais importantes críticos de cinema francês, anos antes, num estudo dedicado ao filme, desenvolvia mais ou menos a mesma teoria. Na verdade, se analisarmos as listas dos 10 melhores filmes de sempre que regularmente se estabelecem, sobretudo a partir da década de 50, veremos que as conclusões se têm mantido muito semelhantes ao longo das décadas. Estes dois filmes aparecem invariavelmente entre os primeiros lugares.
“Ladrões de Bicicletas” data de 1948, dois anos depois de Vittorio De Sica ter realizado “Sciuscia” (Engraxador de Sapatos), outro dos filmes faróis do neo-realismo, mas uns pontos a baixo da obra-prima que nos haveria de dar com “Ladri di Biciclette”. Este é o oitavo título da filmografia deste actor-realizador e testemunha bem o progressivo amadurecimento formal e a aprendizagem do doseamento dramático da sua narrativa. Que o tornam um mestre indiscutível em 1948.
A intriga central do filme é minimalista. Numa Roma saída há pouco da II Guerra Mundial, um desempregado há dois anos, arranja finalmente um emprego como colador de cartazes. O emprego municipal parece sólido, de futuro, mas impõe uma condição: o empregado tem de possuir uma bicicleta própria para deambular pela cidade, com escadote, cartazes e balde de cola. Para Antonio Ricci isso não seria problema se a sua bicicleta não estivesse no prego. Mas Maria, a esforçada e desembaraçada mulher, e o bem avontadado filho Bruno reúnem alguns haveres em casa e conseguem a quantia necessária para recuperar a bicicleta. No dia seguinte Antonio parte feliz para a sua primeira jornada de trabalho, colando nas paredes das avenidas da cidade eterna sedutores cartazes de Rita Hayworth, em “Gilda”. Num momento de descuido, porém, roubam-lhe a bicicleta e o desespero instala-se na família. Antonio corre com o filho pelas ruas e ruelas da vizinhança, à procura do ladrão. Acompanhamos a aflição e angústia que crescem, o desânimo que se avoluma, a revolta que se instala, o acto de vingança que falha, e finalmente pai e filho, de mãos dadas, continuam a caminhar pela cidade. A pé.


Numa Itália destruída pela guerra, onde a miséria e o pequeno delito crescem paredes meias, esta não é uma história invulgar. Rara, todavia, é a sensibilidade demonstrada a conduzir este enredo linear, e a fabulosa conjugação de factores que fazem da obra um filme admirável. O argumento parte de um romance de Luigi Bartolini, adaptado a cinema por uma equipa brilhante, comandada pelo grande teórico do neo-realismo Cesare Zavattini, ao lado de Suso Cecchi D'Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci e Gerardo Guerrieri. Zavattini trabalhou com De Sica em vários outros argumentos (inclusive no já citado “Sciuscia”) e teve seguramente influência na forma como a narrativa se desenvolve de forma extremamente inteligente, sem maniqueísmos fáceis, mas reconstituído com justeza o clima humano e social daqueles tempos: entre os bairros pobres e degradados e os estádios monumentais e as escadarias imperiais, herança do fascismo mussoliniano, Antonio e Bruno não procuram apenas reaver a sua bicicleta roubada, mas vão recuperando para o espectador os fantasmas de um passado onde estão mergulhados. Todo o filme é de uma delicadeza tocante e de uma secura de processos invulgar. Não há demagogia fácil, nem slogans políticos ou sociais gritados aos sete ventos. Tudo é discretamente apontado, deixando ao espectador formar as suas considerações. A miséria existe, é visível, mas os armazéns do prego, atulhados de trouxas de roupa dizem mais do que qualquer palavra. E dizem melhor. As obras de caridade que oferecem as sopas aos pobres, fecham-nos nas igrejas, onde têm de assistir à missa para poderem aceder depois à refeição porque se espera sofregamente. As “Santonas” proliferam em terra de muita necessidade e desesperança. As filas de aflitos em busca de uma palavra de esperança, tentam decifrar os enigmas da vidente, deixando depois ficar uma nota de 50 liras, não nas mãos da santona, que as não suja de dinheiro, mas na sua colaboradora mais próxima que organiza a contabilidade da casa. Os estádios a abarrotar de entusiasmo são outro reflexo deste tempo de incerteza, bem como as camionetas carregadas de adeptos ou os comícios da desilusão.
“Ladrões de Bicicetas” é, seguramente, um dos mais perfeitos exemplos do neo-realismo, cumprindo todos os preceitos do movimento que eclodiu em Itália, ainda durante o tempo do fascismo e da guerra, para se impor definitivamente mal esta terminou. Os realizadores procuraram sair dos estúdios e ir ao encontro da realidade das ruas e dos exteriores sem maquilhagem. Procuraram temas sociais, fugindo á mentira e falsidade das comédias de “telefones brancos” e dos épicos a glorificar o mare nostrum romano e a ideia de império. Trocaram-se os actores de profissão por amadores de uma espontaneidade desarmante. A verdade é que os estúdios estavam muitos deles destruídos e a maquinaria não abundava, assim como faltava a película e a filmagem a cor se mostrava demasiado onerosa para as diminutas posses de quem queria fazer os seus filmes. Entre as condições existentes e a vontade de ultrapassar as necessidades e mostrar a realidade do país, nasceu o neo-realismo que iria ter um período de ouro durante a década de 40 e se mostraria de uma influência determinante do futuro, não só no futuro próximo do cinema italiano, em várias derivas do movimento, como internacionalmente. Seria o neo-realismo a estar na base de um outro movimento, a “nouvelle-vague” francesa, que iria surgir no final dos anos 50 e que se iria expandir em diversas formas de “cinema novo” por todo o mundo.


Há, no entanto, que não passar por cima de alguns equívocos que o movimento poderia causar. Nem por ser filmado na rua, quase sem efeitos, recorrendo a actores não profissionais, optando por temas sociais de grande actualidade, e tudo o mais que recomendava o neo-realismo, nem por tudo isso os filmes eram menos “construídos”, enquadrados, montados, até direccionados ideologicamente que qualquer outro produto cinematográfico. O simples facto de enquadrar um assunto é uma forma de manipular esse assunto. O neo-realismo não foi excepção, nem até ao momento existiu alguma forma de ultrapassar esse dado. Criar é manipular. E por vezes a manipulação que se ostenta é a mais sincera e a menos nociva, pois que a de mais fácil verificação.
De todos os modos o neo-realismo teve o condão de “limpar” o cinema de uma certa tralha fascista e de mobilizar o olhar do espectador para uma realidade diferente. Depois, a qualidade do olhar, a sensibilidade demonstrada, a emoção colocada, o rigor ou a exaltação de que cada autor deu plenas provas ao longo das suas carreiras, tudo isso iria influir na importância deste movimento. Muitos realizadores vieram para a rua filmar, com actores amadores, mas nem todos ficaram na história do cinema. Apenas os grandes motivaram esse interesse e justificaram a influência futura. Uma das razões para o sucesso internacional do neo-realismo deve-se à importância de se terem reunido num mesmo momento, em redor de uma mesma ideia, nomes como os de Zavattini, De Sica, Rossellini, Visconti, Fellini, Antonioni e alguns mais.
Voltando a “Ladrões de Bicicleta” e, como atrás já referimos, há que referir a conjugação de vários factores para tornar este título uma obra de eleição. Já salientamos a importância do argumento, da escolha dos cenários naturais, a sensibilidade e inteligência da realização, mas há ainda que referir a escolha dos actores, sem os quais o filme teria sido outro. De Sica parece que terá sido convidado para realizar a obra para o produtor David O’Selznick, imopondo estre a condição de o mesmo ser interpretado por Cary Grant. De Sica preferiu um operário de uma fábrica dos arredores de Roma, um desconhecido Lamberto Maggiorani. Presentemente o filme vive muito do rosto deste homem, bem assim como do fabuloso miúdo Enzo Staiola (Bruno Ricci), e de Lianella Carell (Maria Ricci). Em todos estes casos o acaso teve a sua importância definitiva. É a própria Lianella Carell quem conta que, sendo jornalista, foi um dia entrevistar Vittorio De Sica, na altura em que este escolhia uma popular para interpretar o papel de Maria. Quando a viu à sua frente, De Sica terá dito: “Esta é Maria”, pedindo para a jornalista realizar um teste no dia seguinte. Não sei se a entrevista se efectuou ou não, mas estava descoberta a magnífica e laboriosa mulher de Antonio Ricci, que é, em grande medida, a alma deste filme, onde as mulheres e as crianças ocupam um destacado lugar (como em quase toda a obra deste cineasta). O facto de Antonio andar a colar cartazes de “Gilda” não me parece acidental. De Sica pretendeu seguramente homenagear o cinema, homenagear a mulher (ele que sempre teve uma aureola de sedutor galanteador), ao mesmo tempo que colocava uma distância evidente entre este cinema pobre italiano e o cinema da grande indústria de Hollywood.


LADRÕES DE BICICLETAS
Título original: Ladri di Biciclette

Realização: Vittorio De Sica (Itália, 1948); Argumento: Cesare Zavattini, Suso Cecchi D'Amico, Vittorio De Sica, Oreste Biancoli, Adolfo Franci, Gerardo Guerrieri, segundo romance de Luigi Bartolini ; Produção: Giuseppe Amato, Vittorio De Sica; al Música: Alessandro Cicognini; Fotografia (p/b): Carlo Montuori; Montagem: Eraldo Da Roma; Design de produção: Antonio Traverso; Direcção de produção: Nino Misiano, Umberto Scarpelli; Assistentes de realização: Luisa Alessandri, Gerardo Guerrieri, Sergio Leone; Som: Biagio Fiorelli, Bruno Brunacci; Companhias de produção: Produzioni De Sica; Intérpretes: Lamberto Maggiorani (Antonio Ricci), Enzo Staiola (Bruno Ricci), Lianella Carell (Maria Ricci), Gino Saltamerenda (Baiocco), Vittorio Antonucci (o ladrão), Giulio Chiari, Elena Altieri, Carlo Jachino, Michele Sakara, Emma Druetti, Fausto Guerzoni, Giulio Battiferri, Ida Bracci Dorati, Nando Bruno, Eolo Capritti, Memmo Carotenuto, Giovanni Corporale, Sergio Leone (estudante do seminário), Mario Meniconi, Massimo Randisi, Checco Rissone, Peppino Spadaro, Umberto Spadaro, etc. Duração: 93 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Costa do Castelo Filmes; Classificação etária: M/6 anos; Estreia em Portugal: 20 de Novembro de 1950.

VITTORIO DE SICA (1901-1974)


VITTORIO DE SICA (1901-1974)

Vittorio Domenico Stanislao Gaetano Sorano De Sica nasceu a 7 de Julho de 1901, em Sora, Lazio, Itália, e viria a falecer a 13 de Novembro de 1974, com 73 anos, em Neuilly-sur-Seine, Hauts-de-Seine, França. Filho de Umberto De Sica, empregado bancário, e de Teresa Manfredi. A sua juventude não foi o que se possa dizer bafejada pela sorte. Passou por dificuldades, numa família pobre da pequena burguesia. “Umberto D.” é dedicado ao pai e de certa forma evoca esses tempos difíceis. No fim da primeira guerra mundial, diploma-se em Contabilidade e estuda no Instituto Superior de Comércio. Casado com a actriz italiana Giuditta Rissone (1937–1954) e depois com a também actriz, mas catalã, Maria Mercader (1959–1974). Pai de Emi De Sica, Manuel De Sica e Christian De Sica.
Oscilando entre a contabilidade, um emprego num banco ou o funcionalismo público, acaba por ir parar ao teatro, depois de um encontro com um amigo, Gino Sabbatini, que lhe anuncia ter entrado para a companhia da actriz Tatiana Pavlova. De Sica tenta igualmente a sua sorte e é logo admitido em pequenos papéis. Começa, pois, cedo a sua carreira de actor, no teatro e no cinema (1917). Dá os primeiros passos na companhia de Tatiana Pavlova (“Sogno d'Amore Ashanta”), passando depois pelas companhias de Luigi e Italia Almirante Manzini (“L'Art et la Maniere”), Luigi Almirante, Giuditta Rissone e Sergio Tofano, durante o período 1927- 1928, representando clássicos da cena europeia, até chegar a primeiro actor, em 1930, na companhia de Guido Salvini e passar para a de Za-Bum, dirigida por Mario Mattoli, conseguindo a sua afirmação definitiva com “Le Lucciole della Citta” (Falconi e Biancoli).
Em 1933 forma a sua própria companhia, a Sergio Tofano-Giuditta Rissone-Vittorio De Sica, que em 1935 se transforma na De Sica-Rissone-Melnatti, com um repertório de obras de tipo cómico-sentimental, em estilo de revista e musical, que, graças à boa actuação dos actores e à enorme popularidade que De Sica estava a ganhar no cinema, consegue a aceitação de todos os públicos, Em 1940, forma de novo a companhia De Sica-Rissone-Tofano (onde interpreta Goetz, Betti, PirandelIo, etc.), que se dissolve em 1942, criando De Sica diversos papéis que lhe garantem sucesso pessoal até 1945, para constituir a sua última companhia, em 1946, a De Sica-Nini Besozzi-Vivi Gioi (com um reportório onde avultam Beaumarchais, Crommelynck, Saroyan, etc.). Em 1957, representa no Festival de Veneza “L'Impresario delle Smirne”, de Goldoni, e, em 1949, “Lettere d'amore”, de Gherardi, que é a sua última aparição no teatro.
A partir daí, consagra-se exclusivamente ao cinema, como actor e realizador, actividade que iniciara em 1940 com “Rosas de Sangue” e a que, desde então, passou a dedicar grande atenção. Os seus primeiros filmes, como realizador, não suscitam grande entusiasmo crítico, são sobretudo comédias teatrais onde vai experimentando a técnica e ganhando endurance. Actor de enorme vitalidade e simpatia, um sedutor inato, bem à maneira italiana, napolitano na exuberância, a sua extensíssima filmografia como actor, mas a de realizador em particular, fazem dele um marco na história do cinema italiano, sendo um dos criadores do neo-realismo, de colaboração com o seu amigo de sempre Cesare Zavattini, do “verismo”, depois de ter passado pela onda das comédias de “telefone branco”, deixando sempre uma marca do seu inconfundível talento, sensibilidade, generosidade e personalidade.
Com “I Bambini ci Guardano” (1944) inicia uma obra pessoal, que se afirma internacionalmente, dois anos depois, com “Sciuscià”, um tremendo falhanço em Itália, um sucesso estrondoso no estrangeiro, particularmente nos EUA, onde ganha um Oscar. Com “Ladri di Biciclette” (Ladrões de Bicicletas) é o reconhecimento. Comparam-no a Chaplin, e a sua áurea mantem-se com Miracolo a Milano (O Milagre de Milão, 1951), Umberto D. (Umberto D., 1952), “Stazione Termini” (Estação Terminus, 1953), “L'Oro di Napoli” (O Ouro de Nápoles, 1954), “Il Tetto” (O Tecto, 1956) ou “La Ciociara” (As Duas Mulheres, 1961). Passa depois por um período de certo apagamento, regressando à ribalta com comédias de grande êxito, em meados da década de 60, “Ieri, Oggi e Domani” (Ontem, Hoje e Amanhã), “Matrimonio all'Italiana” (Matrimónio à Italiana) ou “Un Monde Nouveau” (Um Mundo Novo). A sua carreira estabiliza, sem o prestígio de outrora, mas com muita dignidade, com “Caccia alla Volpe” (A Raposa Dourada), “Sette Volte Donna” (Sete Vezes Mulher), “Le Streghe” (A Magia da Mulher), episódio “Una Sera come le Altre”, “Amanti” (Um Lugar para Amar), “I Girasoli” (O Último Adeus), até voltar ao Oscars com o excelente “Il Giardino dei Finzi-Contini” (O Jardim em que Vivemos, 1970). As últimas realizações não acrescem nada ao seu prestígio: “Lo Chiameremo Andrea” (O Filtro do Amor), “Una Breve Vacanza” (Pausa Breve) ou “Il Viaggio” (A Viagem, 1974).
Na televisão, interpreta “Quatro Homens Justos” (The Four Just Men, 1959), rodada em Inglaterra. Dirige igualmente uma série sobre os maiores tenores líricos.
É vasta a galeria de prémios ganha por Vittorio De Sica, onde se destacam quatro Oscars e diversas nomeações. Em 1947, Oscar Honorário para “Sciuscià”. Em 1949, Oscar de Melhor Filme em Língua não Inglesa, para “Ladrões de Bicicletas”; o mesmo Oscar em 1965, para “Ontem, Hoje e Amanhã”, e em 1972 para “O Jardim em que Vivemos”. Como intérprete, ganhou o Oscar de Melhor Actor Secundário, pela composição de major Rinaldi, no filme de 1957, de Charles Vidor, “A Farewell to Arms”; Recebe o BAFTA (British Academy Award) de 1950 para Melhor Filme, com “Ladrões de Bicicletas”; Vittorio De Sica arrecada o Interfilm Grand Prix, em 1971, no Festival de Berlim; “Milagre de Milão” ganha a Palma de Ouro do Festival de Cannes; “Umberto D.”, “Stazione Termini”, “La Ciociara” ou “L'Oro di Napoli” foram seleccionados para o mesmo Festival, onde “Il Tetto” ganha o Prémio OCIC; Nastro d'Argento para melhor realizador em 1946 por “Sciuscià”; Nastro d'Argento para a melhor película, realizador, argumento, fotografia e música do cinema italiano de 1948-1949 por “Ladrões de Bicicletas”; Nastro d'Argento para o melhor actor italiano de 1948 por “Cuore”; “Il Giardino dei Finzi-Contini” ganha o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 1970.
Conta-se que, durante a rodagem de “La Porta del Cielo” (A Porta do Céu, 1945), Vittorio de Sica empregou com figurantes, mais de 300 judeus e outras pessoas ameaçadas pelos nazis. Para evitar a sua captura e envio para campos de extermínio, e perante o avanço das tropas aliadas, prolongou as filmagens o mais que pode até à chegada dos Aliados, em Junho de 1944. 
Era bem conhecida, e nunca escondida, a sua paixão pelo jogo, onde perdia fortunas, pelo que por vezes trabalhava em projectos meramente comerciais para assegurar verbas para o seu vício e os seus filmes de autor. Nalguns filmes, a sua personagem projectava esse seu prazer pelo jogo (veja-se “O Conde Max” ou “O Ouro de Nápoles”).
Casado em 1937 com Giuditta Rissone, de quem teve uma filha, Emi, conhece em 1942, durante a rodagem de “Un Garibaldino al Convento”, a actriz catalã Maria Mercader (irmã de Ramon Mercader, o assassino de Trotsky), com quem passa a ter uma relação que terminará num casamento que se estende até à sua morte. Mas este casamento foi acidentado: casa com ela em 1959, no México, mas a união é considerada ilegítima em Itália, apesar de se ter divorciado de Rissone em 1954. Em 1968, obtém a nacionalidade francesa e casa, em Paris, novamente com Mercader, de quem já tinha dois filhos, Manuel, nascido em 1949, músico, e Christian, nascido em 1951, actor e realizador. Apesar de divorciado, mantinha uma vida dupla, com duas famílias. Celebrava duplamente o Natal e o Ano Novo. Para o conseguir, atrasava duas horas o relógio em casa de Mercader, e assim brindava numa e noutra casa.



FILMOGRAFIA / como realizador:
1940: Rose Scarlatte (Rosas de Sangue)
1940: Maddalena, Zero in Condotta
1941: Teresa Venerdì
1942: Un Garibaldino al Convento
1944: I Bambini ci Guardano
1945: La Porta del Cielo (A Porta do Céu)
1946: Sciuscià
1948: Cuore
1948: Ladri di Biciclette (Ladrões de Bicicletas)
1951: Miracolo a Milano (O Milagre de Milão)
1952: Umberto D. (Umberto D.)
1953: Villa Borghese
1953: Stazione Termini (Estação Terminus)
1954: L'Oro di Napoli (O Ouro de Nápoles)
1956: Il Tetto (O Tecto)
1958: Anna di Brooklyn
1961: La Ciociara (As Duas Mulheres)
1961: Il Giudizio Universale (O Último Julgamento)
1962: I Sequestrati di Altona (Os Sequestrados de Altona)
1962: Boccaccio '70 (Boccaccio '70), episódio “La Riffa”
1963: Il Boom (Negócio à Italiana)
1963: Ieri, Oggi e Domani (Ontem, Hoje e Amanhã)
1964: Matrimonio all'Italiana (Matrimónio à Italiana)
1966: Un Monde Nouveau (Um Mundo Novo)
1966: Caccia alla Volpe (A Raposa Dourada)
1967: Sette Volte Donna (Sete Vezes Mulher)
1967: Le Streghe ou The Witches (A Magia da Mulher), episódio “Una Sera come le Altre”
1968: Amanti (Um Lugar para Amar)
1970: I Girasoli (O Último Adeus)
1970: Il Giardino dei Finzi-Contini (O Jardim em que Vivemos)
1970: Le Coppie, episódio Il Leone
1971: Dal referendum alla costituzione: Il 2 giugno (Documentário)
1971: I Cavalieri di Malta (Documentário)
1972: Lo Chiameremo Andrea (O Filtro do Amor)
1973: Una Breve Vacanza (Pausa Breve)
1974: Il Viaggio (A Viagem)




FILMOGRAFIA / como actor:
1917: Il Processo Clemenceau, de Alfredo De Antoni
1927: La Bellezza del Mondo, de Mario Almirante
1928: La Compagnia dei Matti (O Clube dos Loucos), de Mario Almirante
1932: Due Cuori Felici, de Baldassarre Negroni
1932: Gli Uomini, che Mascalzoni!, de Mario Camerini
1932: La Vecchia Signora, de Amleto Palermi
1933: La Segretaria per Tutti, de Amleto Palermi
1933: Un Cattivo Soggetto, de Carlo Ludovico Bragaglia
1933: Paprika (Paprika, uma Rapariga dos Diabos), de Carl Boese
1933: La Canzone del Sole, de Max Neufeld
1934: Lisetta, de Carl Boese
1934: Il Signore Desidera?, de Gennaro Righelli
1934: Tempo Massimo, de Mario Mattoli
1935: Amo te sola, de Mario Mattoli
1935: Darò un Milione, de Mario Camerini
1936: Non ti Conosco Più, de Nunzio Malasomma
1936: Ma non è una Cosa Seria, de Mario Camerini
1936: Lohengrin, de Nunzio Malasomma
1936: L'Uomo che Sorride, de Mario Mattoli
1937: Questi Ragazzi, de Mario Mattoli
1937: Il signor Max, de Mario Camerini
1937: Napoli d'altri tempi, de Amleto Palermi
1938: La mazurka di papà, de Oreste Biancoli
1938: Partire, de Amleto Palermi
1938: Il Trionfo dell'amore, de Mario Mattoli
1938: Hanno Rapito un Uomo, de Gennaro Righelli
1938: L'Orologio a Cucù, de Camillo Mastrocinque
1938: Le Due Madri, de Amleto Palermi
1939: Castelli in Aria, de Augusto Genina
1939: Ai Vostri Ordini, Signora!, de Mario Mattoli
1939: Grandi Magazzini, de Mario Camerini
1939: Finisce sempre Così, de Enrique Telémaco Susini
1939: Rose Scarlatte (Rosas de Sangue), de Giuseppe Amato e Vittorio De Sica
1940: Manon Lescaut (Manon Lescaut), de Carmine Gallone
1940: Pazza di Gioia, de Carlo Ludovico Bragaglia
1940: Maddalena... Zero in Condotta, de Vittorio De Sica
1940: La Peccatrice, de Amleto Palermi
1941: L'Avventuriera del Piano di Sopra, de Raffaello Matarazzo
1941: Teresa Venerdì (Uma Rapariga às Direitas), de Vittorio De Sica
1942: Un Garibaldino al Convento, de Vittorio De Sica
1942: La Guardia del Corpo, de Carlo Ludovico Bragaglia
1942: Se io Fossi Onesto (Minha Mulher é um Anjo), de Carlo Ludovico Bragaglia
1943: I Nostri Sogni, de Vittorio Cottafavi
1943: Nessuno torna Indietro, de Alessandro Blasetti
1943: L'Ippocampo, de Gian Paolo Rosmino
1943: Non Sono Superstizioso... ma!, de Carlo Ludovico Bragaglia
1945: Lo Sbaglio di Essere Vivo, de Carlo Ludovico Bragaglia
1946: Il Mondo Vuole Così, de Giorgio Bianchi
1946: Roma Città Libera (Roma, Cidade Aberta), de Marcello Pagliero
1946: Abbasso la Ricchezza!, de Gennaro Righelli
1947: Lo Sconosciuto di San Marino, de Michal Waszynski e Vittorio Cottafavi
1947: Cuore, de Duilio Coletti
1947: Natale al Campo 119, regia di Pietro Francisci
1947: Sperduti nel Buio (Perdidos na Escuridão), de Camillo Mastrocinque
1949: Domani è Troppo Tardi (Amanhã Será Tarde), de Léonide Moguy
1951: Buongiorno, Elefante! (Bom Dia, Elefante), de Gianni Franciolini
1951: Cameriera Bella Presenza Offresi... (Criada, Oferece-se…), de Giorgio Pàstina
1952: Il Processo di Frine, episódio de Altri tempi (Outros Tempos), de Alessandro Blasetti
1953: L'Orso, episódio de “Il Matrimonio” (O Matrimónio), de Antonio Petrucci
1953: Incidente a Villa Borghese (Incidente a Villa Borghese), episódio de “Villa Borghese” (Villa Borghese), de Gianni Franciolini
1953: Il Fine Dicitore, episódio de “Gran Varietà” (No Palco da Vida), de Domenico Paolella
1953: Pendolin, episódio de “Cento Anni d'Amore” (Cem Anos de Amor), de Lionello De Felice
1953: Madame de... (Madame De…), de Max Ophüls
1953: Pane, Amore e Fantasia (Pão, Amor e Fantasia), de Luigi Comencini
1954: Peccato che sia una Canaglia (Que Pena Seres Vigarista), de Alessandro Blasetti
1954: Pane, Amore e Gelosia (Pão, Amor e Ciúme), de Luigi Comencini
1954: Il Divorzio (O Divórcio), episódio de Il letto (Segredos de Alcova), de Gianni Franciolini
1954: Allegro Squadrone (A Alegria no Batalhão), de Paolo Moffa
1954: Vergine Moderna (Uma Rapariga Moderna), de Marcello Pagliero
1954: Scena all'Aperto e Don Corradino, episódio de “Tempi nostri” (Os Nossos Tempos), de Alessandro Blasetti
1954: I Giocatori, episódio de “L'Oro di Napoli” (O Ouro de Nápoles), de Vittorio De Sica
1955: La Bella Mugnaia (A Bela Moleira), de Mario Camerini
1955: Gli Ultimi Cinque Minuti (Os Últimos Cinco Minutos), de Giuseppe Amato
1955: Il Segno di Venere (Sob o Signo de Vénus), de Dino Risi
1955: Pane, Amore e... (Pão, Amor e…), de Dino Risi
1955: Racconti Romani (Contos Romanos), de Gianni Franciolini
1955: Il Bígamo (Agarra-me esse Homem), de Luciano Emmer
1955: I Giorni più Belli, de Mario Mattoli
1956: Mio Figlio Nerone (Os Fins-de-semana de Nero), de Steno
1956: I Colpevoli, de Turi Vasile
1956: Souvenir d'Italie (Aconteceu em Itália), de Antonio Pietrangeli
1956: Noi Siamo le Colonne (Finalistas em Apuros), de Luigi Filippo D'Amico
1956: Padri e Figli (País e Filhos), de Mario Monicelli
1956: Tempo di Villeggiatura (Tempo de Férias), de Antonio Racioppi
1956: Montecarlo (A História de Monte Carlo), de Samuel Taylor e Giulio Macchi
1956: La Fortuna di Essere Donna (A Sorte de Ser Mulher), de Alessandro Blasetti (não creditado)
1957: Casinò de Paris (Casino de Paris), de André Hunebelle
1957: Pane, Amore e Andalusia (Pão, Amor e Andaluzia), de Javier Setó
1957: Il Conte Max (O Conde Max), de Giorgio Bianchi
1957: La Donna che Venne dal Mare (A Mulher Nascida do Mar), de Francesco De Robertis
1957: Il Medico e lo Stregone (O Médico e o Charlatão), de Mario Monicelli
1957: Vacanze a Ischia (Férias em Ischia), de Mario Camerini
1957: Totò, Vittorio e la Dottoressa (Totó, Vittorio e a Médica), de Camillo Mastrocinque
1957: A Farewell to Arms (Adeus às Armas), de Charles Vidor
1957: Amore e Chiacchiere (Amor e… Conversa), de Alessandro Blasetti
1958: Ballerina e Buon Dio (A Bailarina e o Bom Deus), de Antonio Leonviola
1958: Gli Zitelloni (Os Solteirões), de Giorgio Bianchi
1958: Kanone Serenade! ou Pezzo, Capopezzo e Capitano (A Serenata dos Canhões), de Wolfgang Staudte
1958: Anna di Brooklyn (Ana de Brooklyn), de Reginald Denham e Carlo Lastricati
1958: Domenica è Sempre Domenica, de Camillo Mastrocinque
1958: Uomini e Nobiluomini (Fidalgos e Plebeus), de Giorgio Bianchi
1958: La Ragazza di Piazza San Pietro (A Rapariga da Praça de São Pedro), de Piero Costa
1958: Nel Blu Dipinto di Blu, de Piero Tellini
1958: Policarpo, Ufficiale di Scrittura, de Mario Soldati
1958: La Prima Notte (Amor e Vigarice), de Alberto Cavalcanti
1959: Ferdinando I, Re di Napoli (Fernando I, Rei de Nápoles), de Gianni Franciolini
1959: Gastone, de Mario Bonnard
1959: Il Generale della Rovere (O General Della Rovere), de Roberto Rossellini
1959: Il Mondo dei Miracoli (O Mundo dos Milagres), de Luigi Capuano
1959: Il Moralista (O Moralista), de Giorgio Bianchi
1959: Il Nemico di Mia Moglie (O Inimigo da Minha Mulher), de Gianni Puccini
1959: Vacanze d'Inverno (Férias de Inverno), de Camillo Mastrocinque
1960: Austerlitz (Austerlitz), de Abel Gance
1960: La Sposa Bella (O Anjo Vermelho), de Nunnally Johnson e Mario Russo
1960: Le Tre Eccetera del Colonnello (Os 3 Etc. do Coronel), de Claude Boissol
1960: Le Pillole di Ercole (Hércules), de Luciano Salce
1960: Un Amore a Roma, de Dino Risi
1960: Il Vigile (O Herói da Cidade), de Luigi Zampa
1960: La Baia di Napoli (Começou em Nápoles), de Melville Shavelson
1960: La Miliardária (A Milionária), de Anthony Asquith
1961: Gli Attendenti, de Giorgio Bianchi
1961: L'Onorata Società, de Riccardo Pazzaglia
1961: Le Meraviglie di Aladino (Lâmpada de Aladino), de Mario Bava e Henry Levin
1961: I Celebri Amori di Enrico IV, de Claude Autant-Lara
1961: La Fayette, una Spada per Due Bandiere (La Fayette), de Jean Dréville
1961: I Due Marescialli (Os Dois Carabineiros), de Sergio Corbucci
1961: Gli Incensurati, de Francesco Giaculli
1961: Il Giudizio Universale (O Último Julgamento), de Vittorio De Sica
1962: Eva (Eva), de Joseph Losey
1965: Caccia Alla Volpe (A Raposa Dourada), de Vittorio De Sica
1965: Le Avventure e Gli Amori di Moll Flanders (A Vida Amorosa de Moll Flanders), de Terence Young
1966: Io, Io, Io... e Gli Altri (Eu, Eu, Eu e… os Outros), de Alessandro Blasetti
1966: Gli Altri, Gli Altri e Noi, de Maurizio Arena
1967: Un Italiano in America (A América dos Meus Sonhos), de Alberto Sordi
1968: Colpo Grosso alla Napolitana (A Maior Bolada do Mundo), de Ken Annakin
1968: The Shoes of the Fisherman (As Sandálias do Pescador), de Michael Anderson
1968: Caroline Chérie, de Denys de la Patellière
1968: L'Uomo Venuto dal Kremlino, de Michael Anderson
1969: If It's Tuesday, This Must Be Belgium, de Mel Stuart
1969: Una su 13 (Doze Mais Uma), de Nicholas Gessner e Luciano Lucignani
1970: Cose di Cosa Nostra, de Steno
1971: Trastevere, de Fausto Tozzi
1971: Io non Vedo, tu non Parli, lui non Sente (Eu Não Vejo, Tu Não Falas, Ele Não Ouve), de Mario Camerini
1972: L'Odore Delle Belve (Caçador de Escândalos), de Richard Balducci
1972: Siamo tutti in Libertà Provvisoria, de Manlio Scarpelli
1972: Grande Slalom per una Rapina, de George Englund
1972: Le Avventure di Pinocchio, de Luigi Comencini
1972: Ettore lo Fusto, de Enzo G. Castellari
1973: Piccoli Firacoli, de Jeannot Szwarc (TV)
1973: Storia de Fratelli e de Cortelli, de Mario Amendola
1973: Il Delitto Matteotti, de Florestano Vancini
1973: Viaggia, Ragazza, Viaggia, hai la Musica nelle Vene, de Pasquale Squitieri
1974: Dracula cerca Sangue di Vergine... e Morì di Sete!!! ou Blood for Dracula (Sangue Virgem  para Drácula), de Paul Morrissey e Antonio Margheriti
1974: C'Eravamo Tanto Amati (Tão Amigos que Nós Eramos), de Ettore Scola
1974: Intorno, de Manuel De Sica (curta-metragem)
1974: L'Eroe, de Manuel De Sica (TV)

SESSÃO 3 ALEMANHA, ANO ZERO


ALEMANHA, ANO ZERO (1948)

Terceiro filme do tríptico da guerra, “Alemanha, Ano Zero” passa para o outro lado do conflito. Depois de percorrer as feridas da Itália, em “Roma, Cidade Aberta” e “Libertação”, Rossellini vai observar a Alemanha, depois da derrota. Normalmente, a História é contada pelos vencedores, aqui Rossellini está igualmente do lado dos que acabaram de ganhar a guerra, mas está interessado em ver como se vive na Alemanha destroçada, arruinada, moribunda. Não é um projecto habitual. Sobretudo na perspectiva deste cineasta, que não está interessado em mostrar os assassinos no seu habitat devastado. Rossellini procura mostrar o drama que se vive em Berlim logo a seguir à derrocada. O drama físico, as casas esventradas, a falta de alimentos, de medicamentos, de todos os bens de primeira necessidade, mas também o drama moral, psicológico, as feridas internas que uma ideologia patológica instalou na sociedade, levando-a à loucura e prolongando os seus efeitos para lá da derrota.
Saltando as fronteiras, Rossellini não abandona o seu estilo de cinema, ainda que em “Alemanha, Ano Zero” exista um pouco mais de ficção do que nos dois títulos anteriores. Surge essencialmente um protagonista que leva o filme de início a fim, e que se oferece como estrutura central da obra: o pequeno Edmund, um miúdo louro, típico representante da raça ariana, doze anos sobrecarregados de responsabilidade e investido de uma ideologia que lhe impregnou a carne, mas de que ele desconhece obviamente as consequências (apesar de ter os seus efeitos bem reflectidos ao seu redor). O velho pai está acamado, sem poder ajudar a família, e desejando que a morte o leve. O irmão mais velho esconde-se num quarto interior, com receio de que o facto de ter pertencido às forças armadas nazis o incrimine. Uma irmã sobrevive com dificuldade, e Edmund faz pela vida nas ruas arruinadas de uma Berlim apocalíptica. Um professor encontra-o e põe-no a render no mercado negro, vendendo o que pode, mesmo que sejam discos com discursos de Hitler que, reproduzidos no meio dos destroços, assombram o presente com esses ecos do passado. São, aliás, ecos do passado que Rossellini capta, alguns dos quais se reflectem nos rostos e no íntimo desses jovens industriados para o horror.
Intercalando a ficção com imagens de actualidades, buscando essa autenticidade sem retoques que é apanágio do seu cinema, o cineasta colhe planos de uma dureza assombrosa que resulta da própria realidade não manipulada e que se impõem por essa autenticidade sem mácula. O registo é invulgarmente impactante pela sua crueza.
Depois há o segredo de Rossellini a observar o jovem Edmund, oscilando entre a pureza do seu rosto de menino e a impressionante gravidade de algumas expressões que o levaram precocemente à idade adulta. Aquela é uma criança que a vida violentou, a que foi retirada a alegria de uma brincadeira, de um jogo da bola, de uma meiguice materna. Ele foi lentamente transformado numa máquina de sobrevivência, no “homem da família”, com os valores adulterados pela necessidade, com as emoções embaciadas e aturdidas. Um momento de reflexão mais doloroso leva-o à decisão drástica que marca as derradeiras imagens deste “Ano Zero”.
Raras vezes um filme consegue ser assim tão impressionante e duro. Na maioria das vezes, o cinema mostra-se “ficção”, encenação, e o espectador reage em função dessa realidade que sabe ser espectáculo. Rossellini, que todavia também “encena” e “ficciona”, apesar de se basear em factos mais ou menos verídicos, ao que consta, consegue tornar “actualidades” essas imagens. A descrição da vida quotidiana nessa Berlim destroçada de meados da década de 40, é de uma autenticidade arrepiante. As casas superpovoadas, a prostituição, os pequenos roubos, a luta pelos mantimentos mais essenciais, as discussões sobre a forma mais económica de enterrar um cadáver, e de se aproveitar cada bem desse defunto que já não precisa de botas nem de camisa, tudo isso é de uma plausibilidade que desarma. As viagens de Edmund pelos escombros de uma cidade esventrada são a desolação extrema, a abjecção impossível a que a condição humana pode chegar. Nas primeiras imagens do filme, Edmundo cava sepulturas num cemitério. É o trabalho que consegue. Há quem diga que não é trabalho para a sua idade, mas o dilema coloca-se logo a seguir: sem aquele trabalho, como sobreviver? Roubando, necessariamente.
Depois há ainda a notar que o realizador parece olhar sem julgar, deixando essa avaliação para o espectador, que se confronta com os factos sem o auxílio de qualquer juízo prévio. Rossellini mostra, foi assim, é assim. O julgamento fica reservado ao público. Uma aposta incómoda. Esse o cinema de Rossellini, que não faz filmes para entreter, mas para serem úteis, ele próprio o escreveu.
A obra surge dedicada a Romolo Rossellini, primeiro filho de Rossellini, desaparecido muito jovem num acidente, o que terá angustiado profundamente o cineasta, levando-o a atravessar um período de um niilismo sem esperança. “Alemanha, Ano Zero” é também o resultado desse doloroso percurso, onde a culpa de sobreviver parece habitar cada personagem. Muitos cineastas posteriores devem a “Alemanha, Ano Zero” inspiração, de Truffaut a Andrei Tarkovsky, de Ingmar Bergman a Wim Wenders, de Víctor Erice a Abbas Kiarostami, para só citar alguns.

ALEMANHA, ANO ZERO
Título original: Germania, Anno Zero

Realização: Roberto Rossellini (Itália, França, Alemanha, 1948); Argumento: Roberto Rossellini, com colaboração de Carlo Lizzani, Max Kolpé, Sergio Amidei, segundo uma ideia de Basilio Franchina; Produção: Roberto Rossellini, Salvo D'Angelo, Alfredo Guarini; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Robert Juillard; Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção artística: Piero Filippone; Direcção de produção: Marcello Bollero, Alberto Manni, Alfredo Guarini; Assistentes de realização: Max Kolpé, Carlo Lizzani, Franz von Treuberg; Som: Kurt Doubrowsky; Companhias de produção: Tevere Film, SAFDI, Union Générale Cinématographique (UGC), Deutsche Film (DEFA); Intérpretes: Edmund Moeschke (Edmund), Ernst Pittschau (o pai), Ingetraud Hinze (Eva), Franz-Otto Krüger (Karl-Heinz), Erich Gühne (o professor), Heidi Blänkner (Frau Rademaker), Jo Herbst (Jo), Barbara Hintz (amiga de Eva), Christl Merker (Christl), Gaby Raak, Inge Rocklitz, Hans Sangen, Babsi Schultz-Reckewell, Franz von Treuberg, etc. Duração: 78 minutos; Sem estreia comercial, nem distribuição (DVD) em Portugal.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

SESSÃO 2: LIBERTAÇÃO


LIBERTAÇÃO (1946)

“Paisá” é o segundo título dedicado à “trilogia da guerra”, na qual Roberto Rossellini vai olhar a Itália ainda ocupada, mas em vésperas da libertação. Depois de “Roma, Cidade Aberta”, de 1945, e antes de “Alemanha, Ano Zero”, de 1948, este “Libertação” assume uma estrutura aparentemente invulgar, mas que de certa forma se integra plenamente no estilo e no tom usado pelo cineasta. Não se trata de uma história dramaticamente estruturada (já “Roma, Cidade Aberta” não o era, privilegiando a crónica, de apontamentos dispersos), mas de várias pequenas crónicas com alguma ordem interior a uni-las: todas se passam durante os últimos tempos da ocupação nazi (nos anos de 1943 a 1945), quando as tropas norte-americanas subiam já pela península transalpina, desde o sul, onde haviam desembarcado, com rumo ao norte, e cada episódio encontra uma lógica junto dos outros: a progressão é cronológica, do primeiro apontamento, mais antigo, para o último, mais recente, e essa progressão é igualmente geográfica, desde a Sicília, ao sul, durante o desembarque, até ao delta do rio Pó. São anotações que relatam acontecimentos protagonizados por indivíduos ou grupos sociais e que estão associados sempre a feitos, não direi heróicos, apesar de muitos o serem, mas de uma banalidade extraordinária, onde a condição humana é simultaneamente exaltada, mas igualmente vista pelo prisma contrário (conforme se olhe a opressão ou a luta pela libertação). Rossellini não elege igualmente um grupo humano como especialmente merecedor de encómios, tratando por igual o resistente comunista e o sacerdote católico, o miúdo da rua ou a mulher do povo. Também neste aspecto, “Libertação” prolonga o olhar humanista e simples de “Roma, Cidade Aberta”, marcando uma posição moral perante a Humanidade e a forma multifacetada como esta se expressa.

O argumento teve a colaboração de Alfred Hayes, Annalena Limentani, Sergio Amidei, Vasco Pratolini, Federico Fellini, Marcello Pagliero e Roberto Rossellini. Cada um dos seis episódios aparece isolado por um fundo negro, após o qual se integram algumas actualidades da época, o que confere à totalidade um tom documental muito caro a Rossellini. Digamos que as pequenas ficções prolongam harmoniosamente as imagens reais que para trás ficam, e as situam. Uma voz off completa esse enquadramento histórico. 

I. Sicília. 1943, as tropas norte-americanas desembarcam e um grupo de militares tenta chegar ao seu destino evitando os terrenos minados pelos nazis. Numa aldeia, Carmela, uma jovem italiana é “escolhida” para os guiar até junto das ruinas de um castelo que domina a região. Durante a noite, um soldado, Joe, é encarregue de ficar junto de Carmela, vigiando-a. Da desconfiança inicial, passam às confidências, perante as dificuldades da língua diferente. Uma bala de um alemão colhe Joe, Carmela é feita prisioneira pelos nazis que a tentam violar. Quando os outros norte-americanos chegam ao local, descobrem o corpo de Joe e imaginam a traição de Carmela, que todavia teve sorte bem diferente. Equívocos da guerra.

II. Numa Nápoles já libertada, onde se instalaram tropas norte-americanas, o caos social impera. As crianças tentam sobreviver através de todos os meios, entre os quais o roubo. Um miúdo encontra um soldado negro, completamente bêbado, a quem rouba as botas. Este, que trabalha para a polícia miliar, irá reencontrá-lo, desta vez a tentar roubar mercadoria de um camião. Capturado o jovem, este conduz o militar a um bairro miserável onde diz habitar e onde afirma encontrarem-se as botas roubadas. Mas tudo não passa de traumática imaginação do miúdo, cujos pais foram mortos durante os bombardeamentos. E as botas não são as daquele soldado. Equívocos da guerra.  


III. Subindo até Roma, vamos entrar na capital no dia em que esta é libertada pelos soldados aliados (6 de Junho de 1944). Francesca é uma romana jovem que acolhe um soldado americano em sua casa. Há, de um lado e do outro, olhares de pureza e de agradecimento. O soldado irá partir e voltar, meses mais tarde, e não reconhece Francesca, agora adaptada ao estilo de vida dos sobreviventes, que vendem o corpo para assegurar a vida. Num quarto de pensão particular, ela ouve as recordações amorosas desse solado que ficara preso pela imagem dessa Francesca que já não existe. Ou que existirá camuflada pelas necessidades? Francesca larga o soldado adormecido no quarto e deixa-lhe igualmente um bilhete com a morada da “anterior” Francesca. Mas o soldado acorda, amachuca o papel com a “morada de uma prostituta” e parte. Equívocos da guerra.  

IV. Florença é palco de batalha, rua a rua. Hariet, uma enfermeira americana, parte com um amigo, Massimo, que quer regressar a casa, para atravessar a cidade e chegar junto de Lupo, um pintor que se tornou chefe da resistência local. Depois de peripécias várias e perigos inumeráveis, depois de se cruzarem com um fleumático e entusiasta veterano da I Guerra Mundial que observa a guerra do alto do seu terraço, identificando cada munição que explode, Harriet e Massimo conhecem a sorte de Lupo, da boca de um moribundo que expira recolhido nos seus braços.

V. Na região da Emília-Romanha, onde a guerra ainda permanece acesa, um mosteiro recebe a visita de três capelões militares americanos. Mas dois deles são tidos como “no mau caminho”: um é protestante, o outro judeu. Trocam-se mantimentos, e os frades lembram aos americanos que o convento foi criado há mais de 500 anos, “antes ainda de Colombo ter descoberto a América”. Entre os alimentos racionados e a deliberação de “guiar ao bom caminho” os capelães “desviados”, tudo acaba na necessidade de se respeitarem as crenças de cada um.  

VI. No inverno de 1944, na região do delta do Pó, os corpos dos resistentes fuzilados pelos nazis boiam nas águas do rio, enquanto nas margens alemães e resistentes italianos e americanos trocam fogo. Um grupo tenta captar e sepultar condignamente mais um cadáver de um “partigiani”, quando é aprisionado pelos nazis, que liquidam sumariamente os italianos como “terroristas” e tratam os americanos como “prisoneiros de guerra”. Um americano revolta-se e sofre a mesma sorte dos italianos.

Ao longo destes seis episódios, que correspondem a uma outra “viagem por Itália”, no tempo e no espaço, volta a perceber-se a opção de narrativa de Rossellini. Longe das grandes ficções melodramáticas, perto dos homens comuns, não exaltando a narrativa através de qualquer tipo de efeito ou redundância, usando uma interpretação neutra, recorrendo essencialmente a actores não profissionais, tentando surpreender fundamentalmente as emoções no seu estado puro. Obviamente que o filme transborda de emoção, que se sente em cada plano a tragédia de Itália e do seu povo, que a dor marca os olhares e os gestos, que o heroísmo espreita a cada esquina, mas tudo decorre em serenidade e justeza. Um belíssimo filme que, depois de “Roma, Cidade Aberta”, lança internacionalmente Rossellini, o neo-realismo e o cinema italiano do pós-guerra.  


LIBERTAÇÃO
Título original: Paisà
Realização: Roberto Rossellini (Itália, 1946); Argumento: Sergio Amidei, Klaus Mann, Federico Fellini, Marcello Pagliero, Alfred Hayes, Vasco Pratolini, Rod E. Geiger; Produção: Rod E. Geiger, Roberto Rossellini, Mario Conti; Música: Renzo Rossellini; Fotografia (p/b): Otello Martelli; Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção de produção: Augusto Dolfi, Ugo Lombardi, Alberto Manni; Assistentes de realização: Eugenia Handamir, Annalena Limentani, Federico Fellini, Massimo Mida; Som: Ovidio Del Grande, Valerio Secondini; Companhias de produção: Organizzazione Film Internazionali (OFI), Foreign Film Productions; Intérpretes: Carmela Sazio (Carmela), Robert Van Loon (Joe, o soldado americano), Benjamin Emanuel, Raymond Campbell, Harold Wagner, Albert Heinze, Merlin Berth, Mats Carlson, Leonard Parrish (todos no episodio I: Sicilia); Dots Johnson (Joe, o MP americano), Alfonsino Pasca (Pasquale (todos no episodio II: Napoli); Maria Michi (Francesca), Gar Moore (Fred, o soldado americano), (no episodio III: Roma); Harriet Medin (Harriet, enfermeira), Renzo Avanzo (Massimo) (no episodio IV: Firenze); William Tubbs (capitão Bill Martin) (no episodio V: Appennino Emiliano); Dale Edmonds (Dale, o agente OSS), Allan (soldado americano), Dan (soldado americano), Roberto Van Loel (soldado alemão), Cigolani (resistente) (todos no episodio VI: Porto Tolle), e ainda Giulio Panicali (narrador), Iride Belli, Lorena Berg, Pippo Bonazzi, Gianfranco Corsini, Leslie Daniels, Fattori, Elmer Feldman, Gigi Gori, Newell Jones, Giulietta Masina (jovem no episodio IV: Firenze), Carlo Pisacane, etc. Duração: 126 minutos; 134 minutos (versão restaurada); Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Data de estreia em Portugal: 21 de Janeiro de 1949.