O
GRITO (1957)
Cineasta da “alienação”, como era
considerado, com justeza, aliás, pela generalidade da crítica nos anos 60,
Antonioni afasta-se, todavia, de uma análise esquemática e maniqueísta da
sociedade e das suas crises, por um aprofundar dos sentimentos individuais e um
estudo da sua deterioração progressiva, em confronto com essa mesma sociedade.
Isso é já manifesto em obras como “Cronaca di Un Amore” ou “La Signora Senza
Camelie”, menos em “As Amigas”, mas torna-se mais claro numa película como “O
Grito”, uma das suas obras-primas indiscutíveis, um título que é um marco na
sua filmografia, antecedendo, e dando ligação à sua tetralogia imediata, que o
irá impor como um dos maiores cineastas do pós-guerra.
Análise de uma crise, estudo minucioso
de uma desagregação emocional, “O Grito” abre novas perspectivas ao cinema
italiano, caldeando, em imagens sublimes, a interioridade de uma personagem e o
clima social de um tempo. Admirável, como a fotografia, a preto e branco, de
Gianni Di Vennanzo.
Interessante será reavivar a recepção
crítica que uma tal obra teve na época da sua estreia. Analisar “crises
existenciais” e turbulências emocionais, com recurso a adultérios, traições,
solidões e suicídios, era tarefa que se reservava à burguesia em perda de
valores ou em perturbação identitária. Colocar um operário nessa condição não
seria insólito (veja-se o caso de “Obsessão”, de Visconti, que é muito anterior
a “O Grito”), mas não deixava de ser preocupante, sobretudo para aqueles que
achavam que a classe operária devia ocupar-se sobretudo de movimentos sociais
reivindicativos, de grandes projectos colectivos, esquecendo os casos pessoais
e os dramas individuais.
Numa crítica pertinente de Manuel Pina,
publicada aquando da estreia de "O Grito", rebatendo os frágeis e
esquemáticos raciocínios de Guido Aristarco (historiador do cinema
indubitavelmente importante, mas demasiado manietado por um método crítico que
não lhe permitia analisar em profundidade o que se estava a processar na
Itália, no declinar da década de 50), podia ler-se: "Nos filmes anteriores
de Antonioni estivemos sempre em presença de uma crise; mas até aqui as
histórias situavam-se na burguesia. Parece não se perdoar a Antonioni tornar extensivo
à classe operária o conceito de alienação. A verdade é que existe uma
diferença: ao passo que nos filmes anteriores a crise nos era dada como
situação normal, aqui ela apresenta-se-nos como excepção no meio de indivíduos
empenhados em tarefas de outro tipo, mas a excepção que representa Aldo não é
tão pouco generalizada que não mereça atenção; e, acima de tudo, torna-se
particularmente importante pelas consequências que pode acarretar".
E mais adiante: "Por isso não me
parece acidental, como pretende Aristarco, a escolha de um operário para figura
central da história. Antonioni fê-lo deliberadamente, com o intuito de provar a
falsidade do raciocínio elementar que pretende que a consciência de um
indivíduo é rigidamente determinada pela classe a que pertence. Esta é de resto
também a opinião de Renzi. "O Grito" oferece-se assim como uma
demonstração do que pode acontecer quando um indivíduo, incapaz de resolver o
conflito indivíduo-sociedade, coloca em primeiro plano os seus problemas pessoais:
tal indivíduo fugirá sempre sistematicamente à necessidade da escolha, e o
caminho que percorre conduzi-lo-á necessariamente à autodestruição".
Estas longas citações colocam-nos
imediatamente no centro do problema levantado por "II Grido". Depois
de ter sido abandonado pela amante (Irma), Aldo, um operário especializado de
uma fábrica de açúcar da planície do Pó, deixa a sua aldeia natal, acompanhado
pela filha. Deambula ao longo do rio, visita uma antiga namorada, vive depois
durante alguns dias com a proprietária de uma bomba de gasolina, finalmente com
uma prostituta. A todas abandona, regressando à sua aldeia, onde vem a saber
que Irma tem já um filho de outro homem. Ao atravessar o povoado, verifica que
os seus antigos colegas andam envolvidos em manifestações contra a expropriação
de uns terrenos locais. Aldo, porém, está cansado. Ele próprio o confessa. Por
seu turno, os antigos companheiros já nada têm a ver com ele. Um deles chega a
dizer-lhe: "Depois falarei contigo. Agora tenho outras coisas que fazer".
Tornado um estranho para si e para os outros, Aldo sobe ao alto da sua antiga
torre e suicida-se. O grito de Irma não acusará eco. Lá longe, a multidão
continuará a correr noutra direcção.
Análise de uma crise, "O
Grito" é seguramente um dos melhores filmes de Michelangelo Antonioni.
Embora cientes da importância de obras futuras, como "A Noite",
"O Eclipse", "O Deserto Vermelho” ou "Blow-Up", embora
admitindo uma ulterior depuração estilística, a verdade é que "O Grito"
permanece com um lugar à parte, destacando-se pela sua sinceridade narrativa,
por todo esse longo caminho que conduzirá o protagonista à sua autodestruição,
depois de ter atravessado as paisagens lamacentas e enevoadas do delta do Pó. O
cineasta da lucidez (como se lhe chamou) já ultrapassa em "O Grito"
as coordenadas de um realismo estático, atento unicamente aos grandes momentos
da história italiana. Com "II Grido", Antonioni abre novas
perspectivas à cinematografia italiana, paralisada sob as novas ameaças do
neo-capitalismo. Como consequência directa da mutação da realidade social
italiana nos últimos anos, haveria que fazê-la acompanhar por idêntico processo
crítico. Isso tentou Antonioni. Poucas vezes, porém, com a clareza e a
simplicidade expositiva deste "O Grito", que, por si só, bastava para
impor a reputação de um dos maiores cineastas contemporâneos.
Indissociavelmente ligados aos
propósitos do autor vamos encontrar todos os elementos constitutivos da obra. A
fotografia de Gianni di Vennanzo, a montagem de Eraldo da Roma, a música de
Giovanni Fusco, ou a interpretação, tudo se conjuga de forma a oferecer ao
espectador uma imagem aproximada de um estado psicológico e social.
O
GRITO
Título
original: Il Grido
Realização: Michelangelo
Antonioni (Itália, 1957); Argumento: Michelangelo Antonioni (ideia), Elio
Bartolini, Ennio De Concini; Produção: Franco Cancellieri, Danilo Marciani,
Ralph Pinto; Música: Giovanni Fusco; Fotografia (p/b): Gianni Di Venanzo;
Montagem: Eraldo Da Roma; Direcção artística: Franco Fontana; Guarda-roupa: Pia
Marchesi; Assistente de realização: Luigi Vanzi; Som: Vittorio Trentino;
Companhias de produção: SpA Cinematografica, Robert Alexander Productions; Intérpretes: Seteve Cochran, Alida
Valli, Dorian Gray, Betsy Blair, Lynn Shaw, Gabrieíla Pallota, Gaetano
Mattencci, Guerrino Campanii, etc. Produção: Franco Cancellie-ri/SPA
Cinematográfica; Intérpretes: Steve Cochran (Aldo), Alida Valli (Irma), Betsy
Blair (Elvia), Gabriella Pallotta (Edera), Dorian Gray (Virginia), Lynn Shaw
(Andreina), Mirna Girardi (Rosina), Pina Boldrini (Lina), Guerrino Campanilli,
Pietro Corvelatti, Lilia Landi, Gaetano Matteucci, Elli Parvo, etc. Duração: 102 minutos; Distribuição em
Portugal: Costa do Castelo Filmes (DVD); Classificação etária: M / 12 anos;
Data de estreia em Portugal: 9 de Outubro de 1958.