O
NEORREALISMO (1945 – 1960)
O
neorrealismo é seguramente dos movimentos artísticos que, no campo do cinema,
teve uma maior influência em todo o futuro da cinematografia mundial. Surgiu
num momento muito paricular da história da Europa (e do mundo) mas teve
antecessores que possibilitaram a sua eclosão, nomeadamente algumas escolas
realistas, como o documentarismo social inglês dos anos 30 (onde avultam as obras
de John Grierson, Basil Wright, Edgar Anstey, Stuart Legg, Paul Rotha, Arthur
Elton, Humphrey Jennings, Harry Watt ou Alberto Cavalcanti, entre outros),
algumas incursões da escola soviética, mas também de muitos cineastas com uma
obra muito particular, como Robert Flaherty, Joris Ivens, Dziga Vertov e tantos
mais. Integrando-se nessa corrente realista, o neorrealismo teve, todavia,
particularidades próprias.
Não
querendo aqui enunciar exaustivamente as características do neorrealismo, é
conveniente sublinhar algumas delas. O neorrealismo nasce de considerandos e de
situações diversas que se reúnem: o cinema italiano foi, durante a época fascista,
ou um cinema de propaganda do sistema, precisamente do fascismo mussoliniano,
ou um cinema de fuga à realidade. Os cineastas que estavam com o fascismo,
elogiavam-no, os que não estavam, ou frontalmente se lhe opunham, tentavam
trabalhar na sua arte nos limites das possibilidades sem se comprometerem,
criando um cinema “caligrafista”, muito estilizado, simbólico, de sofisticadas
e inócuas comédias de “telefones brancos”, ou então adaptando obras literárias
do século XIX, que tinham muito pouco a ver com a realidade italiana dos anos
30 e 40, até final da guerra. Durante o fascismo, uma nova geração de jovens
interessara-se particularmente pela crítica cinematográfica, pela escrita de
argumentos, pela realização, muitos como assistentes de realização, e quase
todos se reuniram em redor de criações do regime, como o Centro Sperimentale di
Cinematografia (CSC), localizado em Roma, fundado em 3 de abril de 1935, embora
a Scuola Nazionale di Cinema (então denominada Scuola Nazionale di
Cinematografia), já estivesse em atividade na época. Benito Mussolini, o seu
filho Vittorio e, sobretudo, Galeazzo Ciano deram grande impulso à criação e
manutenção do CSC, bem assim como ao projeto da Cinecittà. O edifício onde se
instalou o Centro foi construído em 1935, ao mesmo tempo que a Cinecittà, em
frente aos estúdios cinematográficos, na periferia romana. Entre alguns mais, o
Centro Sperimentale di Cinematografia formou, entre 1935 e 1945, profissionais
como Michelangelo Antonioni, Steno, Alida Valli, Pasqualino De Santis, Pietro
Germi, Dino De Laurentiis ou Luigi Zampa, e entre 1945 e 1968, Marco
Bellocchio, Liliana Cavani, Vittorio Storaro, Monica Vitti, Néstor Almendros,
Tomás Gutiérrez Alea, Claudia Cardinale ou Domenico Modugno.
Mussolini
e o filho Vittorio deram grande importância ao cinema, “como elemento de
formação e divulgação dos valores do fascismo” e foram também eles, nessa mesma
perspectiva de impulsionar o cinema como arte de propaganda, os instigadores do
Festival de Cinema de Veneza, que se inaugurou a 6 de agosto de 1932. De
início, integrava a Bienal de Arte de Veneza, que de dois em dois anos tentava
reunir e dar a conhecer as diversas correntes artísticas europeias. Mas como a
pintura, a escultura ou a música não atraíam as massas tanto quanto o desejado,
o secretário geral da Bienal, o escultor Antonio Mariani, teve a ideia, ousada
para a época, de inserir o cinema nesse evento. Para Mussolini, o Festival era
uma bela oportunidade de propaganda política e de ver afluir ao país divisas
estrangeiras. O Festival de 1932 acolheu vinte e nove filmes e o de 1934
recebeu cinquenta; participaram dezassete países, entre os quais os Estados
Unidos da América. O evento passou a anual, pelo que a terceira edição do
Festival ocorreu em 1935. O Palazzo del Cinema foi inaugurado 1937. Em 1940 e 1941, o Festival foi um
acontecimento fundamentalmente político, com a "semana do filme
italo-alemão" e, em 1942, foi anulado e ressuscitou em 1946, com a
participação de filmes franceses, americanos, ingleses e soviéticos.
Em finais
de 1937, Vittorio Mussolini viajou até Hollywood procurando apoio dos estúdios,
que o receberam friamente ou mesmo se recusaram a recebê-lo (Goldwyn Mayer, por
exemplo). Outra das iniciativas importantes de Vittorio foi a criação da
revista “Cinema” que se tornaria ponto de reunião de futuros cineastas e
críticos fundadores do neorrealismo. Também como argumentista e produtor,
Vittorio, que era piloto de aviação de guerra, se tornou notado, trabalhando
com nomes como Rossellini, a quem encomendou três filmes do seu período
fascista - “La nave bianca” (1941), “Un pilota retorna” (1942) e “L'uomo dalla
croce” (1943) - , Antonioni, Mario Mattoli, entre outros. Estranhamente, a
formação oferecida por Vittorio Mussolini aos jovens cinéfilos italianos
haveria de se voltar contra as ideias por ele defendidas. Todos se tornaram
anti-fascistas, mal terminou a guerra. Quanto a Vittorio, exilou-se na
Argentina, regressou a Itália em 1967, e morreu em 1997.
Quando se
aproxima o fim da guerra e se verifica a possibilidade de abordar temas
proibidos até aí, o próprio fascismo, a guerra e a ocupação alemã, a
resistência, o drama diário do povo italiano, este foi o caminho. Mas a esta
orientação ideológica (muito condicionada pelos comunistas, que tinham saído
vitoriosos da coordenação da Resistência), outra se lhe juntou igualmente muito
motivadora da escolha do caminho. Após a derrota, a Itália estava completamente
destruída, a indústria cinematográfica praticamente não existia, não havia
estúdios funcionais, não havia material técnico em boa qualidade, não havia
actores e realizadores (alguns dos que havia ou estavam comprometidos com o
fascismo, ou a mudarem de casaca rapidamente, ou envelhecidos, ou em fuga…),
não havia capital para obras sumptuosas.
Da reunião
destes factores, nasceu um cinema ideologicamente não muito coerente, apesar de
nalguns casos de forte orientação
marxista, mas que se podia caracterizar por aspectos significativos para
definir um movimento ou uma corrente: filmagens fora dos estúdios, em
exteriores ou interiores naturais, pouco material técnico, uso quase exclusivo
de película a preto e branco, quase total ausência de actores profissionais,
lançamento de uma nova geração de cineastas, saídos da resistência intelectual
e cultural ao fascismo, temas da vida do dia-a-dia, assunção de uma voz nova
nos ecrãs, o povo autêntico, sem caracterização ou guarda-roupa especial. Esta
foi a revolução imposta um tanto pelas disponibilidades técnicas da época e do
local, outro tanto pela intencionalidade política, social, cultural e sobretudo
cinematográfica.
Nos
primeiros tempos, a ortodoxia marxista imperou, mas curiosamente terá sido no
cinema que ela se fez menos impositiva. Na literatura, em Itália (e noutros
países, como Portugal), ela terá sido mais forte, contagiando mais autores e
prolongando no tempo a sua influência. Durante a época fascista, a literatura
italiana, para lá de obras apologéticas do regime, era dominada por uma certa
vanguarda (o Futurismo marinettiano ou um certo hermetismo formal) ou por autores como Giovanni Verga e seu
“verismo” que irá oscilar entre o fascínio pelo fascismo e interessar jovens
cineastas como Visconti, que adapta obras suas em “A Terra Treme”.
Curioso
será relembrar alguns escritores italianos que impuseram o neorrealismo desde
os anos 40, como Elio Vittorini, Cesare Pavese, Vasco Pratolini, Pier Paolo
Pasolini, Italo Calvino, Beppe Fenoglio, Carlo Cassola, Alberto Moravia, Primo
Levi, Ignazio Silone, entre alguns mais. Interessante será observar a palavra
de um deles referindo-se ao movimento. Escreve Italo Calvino (1964, prefácio a
“Il Sentiero Dei Nidi Di Ragno”), que o neorrealismo “non fu una scuola, ma un
insieme di voci, in gran parte periferiche, una molteplice scoperta delle
diverse Italie, specialmente delle Italie fino allora più sconosciute dalla
letteratura”. Também na literatura, portanto, a orientação era diversa, ainda
que a necessidade de intervir, de testemunhar fosse unânime.
Tanto na
literatura como no cinema, a criação neorrealista procura descrever de imediato
a realidade social e humana do país, enquadrando-as no ambiente da época, dando
inclusive especial atenção a especificidades regionais e observando o quadro
com preocupações éticas e igualmente estéticas. A verdade é que o tipo de
rodagem que o neorrealismo impôs veio a influenciar toda a história do cinema
posterior. Este tipo de “cinema pobre” sem magia estereotipada, sem grandes
recursos, sem o glamour das estrelas e dos estúdios, sem temas fantásticos e
fantasistas, esteve na origem de inúmeras experiências em todo o mundo, desde a
Nouvelle Vague francesa, passando pelo Free Cinema inglês, pelos novos cinemas
que se conheceram na década de 60 na Europa Ocidental e de Leste, pela América
Latina, pela India, chegando aos próprios EUA, onde os primeiros títulos
italianos de Rossellini e De Sica provocaram ondas de entusiasmo
transbordantes.
Regressando
a Itália, em 1945, surge “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini, que
inicia formalmente o movimento. Mas antes já tinham aparecido alguns
antecedentes, como “I Bambini ci Guardano”, de Vittorio De Sica, “Ossessione”,
de Luchino Visconti, ou “Quattro Passi fra la Nuvole”, de Alessandro Blasseti,
todos de 1942-44. Os grandes filmes e os maiores cineastas que este movimento
revelou situam-se, no entanto, em campos muito diversos: Roberto Rossellini
(além de “Roma, Cidade Aberta”, ainda “Libertação” ou “Alemanha Ano Zero”),
Vittorio De Sica, (“Ladrões de Bicicletas”, “Humberto D”, “Milagre de Milão”),
Luchino Visconti (para lá de “Ossessione”, “A Terra Treme”, “Belíssima”),
Federico Fellini (“O Sheik Branco”, “Os Inúteis”, “A Estrada”, “As Noites de
Cabiria”), Michelangelo Antonioni (“Agente do Pó”, “Escândalo de Amor”, “As
Amigas, “O Grito”), Dino Risi (“Retalhos da Vida”, “A Ultrapassagem”, “Vida
Difícil”), Mario Monicelli (“Vida de Cão”, “Polícias e Ladrões”, “Proibito”,
“Un eroe dei nostri tempi”, “Gangsters Falhados”, “A Grande Guerra”), Alberto
Lattuada (“O Bandido”, “O Delito”, “Sem Piedade”, “O Moinho do Pó”, “Anna”, “O
Capote”), Pietro Germi (“La Città si difende”, “O Bandido da Cova do Lobo”,
“Gelosia”, “O Ferroviário”, “O Homem de Palha”), Cesare Zavattini (“Retalhos da
Vida”), bem acompanhados por alguns realizadores com obra respeitável e
interessante, como Luigi Comencini, Carlo Lizani, Giuseppe De Santis, Aldo
Vergano, Luciano Emmer, Renato Castellani ou Luigi Zampa, entre outros.
Falar-se
num processo comum é possível, mas difícil, mesmo impossível descortinar um
ideário colectivo. A religiosidade de Rossellini nem sequer se assemelha à de
Fellini, o humanismo de De Sica não se compara com Antonioni, nem mesmo a visão
marxista de Visconti tem paralelo na de De Santis, Lizzani ou Emmer. Talvez uma
das maiores virtudes deste movimento tenha sido a de permitir analisar a
realidade social da Itália do pós-guerra sob diversos pontos de vista que uns
aos outros se completam.
PRINCIPAIS
FILMES NEOREALISTAS
(1943-1960)
1942: Quattro
Passi fra la Nuvole (Dois Dias Fora da Vida), de Alessandro Blasseti
1943:
Obsessão (Ossessione), de Luchino Visconti
1944:
I Bambini ci Guardano, de Vittorio De Sica
1945:
Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), de Roberto Rossellini
1946:
(Sciuscià), de Vittorio De Sica
1946:
Libertação (Paisà), de Roberto Rossellini
1946:
O Bandido (Il Bandito), de Alberto Lattuada
1946:
Um Dia na Vida (Un Giorno nella Vita), de Alessandro Blasetti
1946:
(Il Sole Sorge Ancora), de Aldo Vergano
1947:
(Caccia Tragica), de Giuseppe De Santis
1947:
(Gioventù Perduta), de Pietro Germi
1948:
Sem Piedade (Senza Pietà), de Alberto Lattuada
1948:
Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero), de Roberto Rossellini
1948:
Ladrões de Bicicletas (Ladri di Biciclette), de Vittorio De Sica
1948:
A Terra Treme (La Terra Trema), de Luchino Visconti
1948:
Em Nome da Lei (In Nome della Legge), de Pietro Germi
1948:
Sob o Céu de Roma (Sotto il Sole di Roma), de Renato Castellani
1948:
(Anni Difficili), de Luigi Zampa
1948:
(Fantasmi del Mare), de Francesco De Robertis
1949:
Arroz Amargo (Riso Amaro), de Giuseppe De Santis
1949:
É Primavera (È Primavera), de Renato Castellani
1949:
(Il Mulatto), de Francesco De Robertis
1949:
O Moinho do Rio Pó (Il Mulino del Po), de Alberto Lattuada
1950:
Stromboli (Stromboli Terra Di Dio), de Roberto Rossellini
1950:
Escândalo de Amor (Cronaca di un Amore), de Michelangelo Antonioni
1950:
Não Há Paz Entre as Oliveiras (Non c’è Pace tra gli Ulivi), de Giuseppe De
Santis
1950:
O Caminho da Esperança (Il Cammino della Speranza), de Pietro Germi
1950:
(Gli Amanti di Ravello), de Francesco De Robertis
1950:
Domingo de Agosto (Domenica d’Agosto), de Luciano Emmer
1951:
Belíssima (Bellissima), de Luchino Visconti
1951:
Atenção, Bandidos (Achtung!
Banditi!), de Carlo Lizzani
1951:
(Luci del varietà), de Federico Fellini, Alberto Lattuada
1951:
O Milagre de Milão (Miracolo a Milano), de Vittorio De Sica
1952:
Europa 51 (Europa ’51), de Roberto Rossellini
1952:
O Sheik Branco (Lo Sceicco Bianco), de Federico Fellini
1952:
O Bandido da Cova do Lobo (Il Brigante di Tacca del Lupo), de Pietro Germi
1952:
O Capote (Il Cappotto), de Alberto Lattuada
1952:
O Pão Nosso de Cada Dia (Roma Ore 11), de Giuseppe De Santis
1952:
Dez Réis de Esperança (Due Soldi di Speranza), de Renato Castellani
1952:
Processo Contra a Cidade (Processo Alla Città), de Luigi Zampa
1952:
(Carica Eroica), de Francesco De Robertis
1952:
Humberto D (Umberto D.), de Vittorio De Sica
1953:
Retalhos da Vida (L'Amore in Città), de Michelangelo Antonioni, Federico
Fellini, Alberto Lattuada, Carlo Lizzani, Francesco Maselli, Dino Risi, Cesare
Zavattini
1953:
A Dama Sem Camélias (La Signora Senza Camelie), de Michelangelo Antonioni
1953:
Os Inúteis (I Vitelloni), de Federico Fellini
1953:
Estação Terminus (Stazione Termini), de Vittorio De Sica
1953:
Viagem em Itália (Viaggio in Italia), de Roberto Rossellini
1953:
Os Sete da Ursa Maior (I Sette dell’Orsa Maggiore), de Francesco De Robertis
1953:
Nós, Mulheres (Siamo Donne), de Gianni Franciolini, Alfredo Guarini, Roberto
Rossellini, Luchino Visconti, Luigi Zampa
1953:
Os Vencidos (I Vinti), de Michelangelo Antonioni
1953:
A Loba (La Lupa), de Alberto Lattuada
1954:
A Estrada (La Strada), de Federico Fellini
1954:
(Cronache di Poveri Amanti), de Carlo Lizzani
1955:
Os Evadidos (Gli Sbandati), de Francesco Maselli
1955:
As Amigas (Le Amiche), de Michelangelo Antonioni
1955:
O Tecto (Il Tetto), de Vittorio De Sica
1955:
O Conto do Vigário (Il Bidone), de Federico Fellini
1956:
O Ferroviário (Il Ferroviere), de Pietro Germi
1957:
O Grito (Il Grido), de Michelangelo Antonioni
1957:
As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria), de Federico Fellini
1958:
(Ragazzi della Marina), de Francesco De Robertis
1958:
O Homem de Palha (L'Uomo di Paglia), de Pietro Germi
1960:
Era Noite em Roma (Era Notte a Roma), de Roberto Rossellini
1960:
Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i Suoi Fratelli), de Luchino Visconti
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